Neste mês de maio de 1992,
faz dez anos que Los nacimientos, primeiro volume da
trilogia Memoria del fuego foi publicado. Dos três, é o único que está dividido em duas partes:
“Primeiras vozes” e “Velho Novo Mundo”.
A primeira parte é
constituída das lendas do Continente na sua idade pré-colombiana: os mitos indígenas de fundação recreados
por Eduardo Galeano a partir do material recolhido em livros de Antropologia. Na
segunda, “Velho Novo Mundo”, em pequenos textos, pequenas peças de um vasto mosaico, Eduardo Galeano narra a
história da América desde 1492 até o ano de 1700. Desde os medos e as
inseguranças do punhado de homens que em três barquinhos remendados avançam pelo mar desconhecido que talvez se
acabe no horizonte. Desde o primeiro gesto de
Colombo ao chegar em Guanahani, caindo de joelhos e beijando o chão para, então
murmurar, três vezes, os nomes de Fernando e Isabel a quem a partir desse dia,
passou a pertencer a terra em que aportara: o mar de corais, as areias, as rochas
verdíssimas de musgo, os bosques, os papagaios e estes homens de pele de louro
que não conhecem a culpa nem o dinheiro e que, aturdidos, contemplam a cena. Alimentados por suas
crenças, não duvidam terem diante de si os seres anunciados pelas profecias que
chegariam do céu. Não podiam saber que logo eles iriam instalar nas ilhas e nas
terras firmes um inferno constantemente renovado que não poupou nem a terra,
nem as riquezas que essa terra continha, nem aqueles que, até então, eram seus
donos.
E, espaços de horrores se
sucedem a partir de 1492: no Haiti os espanhóis queimam os indígenas por haver
enterrado as imagens de Cristo e da Virgem na esperança de que esses novos deuses
ofertados pelos estrangeiros, fecundassem a terra onde haviam semeado o milho,
a mandioca, a batata-doce e o feijão; em Tuxkahá, Cortéz decepa a cabeça do
príncipe índio e o pendura pelos pés; no Chile, foram decapitados os sete
caciques índios que haviam ido até os espanhóis em missão de paz; e a península
de Yucatán presenciou, por ordem do bispo, transformarem-se em cinzas, oito
séculos de literatura maya.
E, a medida que as naves dos
ibéricos aportavam no Continente, ele foi sofrendo esse constante levantar do
fogo e dos punhais sempre justificados por crenças e por direitos a serviço de
ambições e ânsias de poder.
Corria o ano de 1562 e
pendurados pelos pés, os índios recebiam banho de cera fervendo; no ano de
1574, fruto das delações, celebra-se o Auto da Fé na cidade do México e há os
que são chicoteados e há os que morrem na fogueira por, de alguma forma ou de
outra, terem se afastado das verdades eternas impingidas. Em 1583, índios donos
de milharais irrigados por canais e represas, quando se recusaram a pagar
tributo aos espanhóis, foram destruídos. Dos que sobreviveram, lhes cortaram o
pé.
E, ano após ano, a conquista
vai sendo feita. O Continente manchado de sangue e de maldades, pelas
Instituições e pelo idioma que nele os ibéricos instalaram, passa a ter uma
nova História.
Nela são cultuados os
Conquistadores.
Cronologicamente, um ano
depois do outro, Eduardo Galeano em Los nacimientos que a Editora Paz e Terra publicou em 1983, faz
reviver a criação desse “Velho Novo Mundo”.
Nas suas palavras,
exatamente como ele desejou, essas histórias - que a História Oficial
estratifica em rígidos conceitos nos quais cabem apenas uma única versão, a dos
Conquistadores - adquirem vida.
E novos sentidos que
permitem ver não somente os pés de barro e as almas negras dos “heróis”, mas o
acontecer de momentos luminosos.
Em plena Luz
Lançando fumaça sob seu traje de ferro,
atormentado por picadas e por chagas, Alvar Nuñes Cabeça de Vaca desce do
cavalo e vê Deus pela primeira vez.
As borboletas gigantes voam a seu
redor. Cabeça de Vaca se ajoelha diante das Cataratas de Iguaçú. As torrentes,
estrepitosas, espumantes, se atiram do céu para lavar o sangue de todos os
caídos e redimir todos os desertos, torrentes que desatam vapores e arco-íris e
arrancam selvas do fundo da terra seca: águas que bramam, ejaculação de Deus
fecundando a terra, eterno primeiro dia da Criação.
Para descobrir essa chuva de Deus
Cabeça de Vaca tinha caminhado a metade do mundo e navegado a outra metade.
Para conhecê-la tinha sofrido naufrágios e tristezas; para vê-la nasceu com
olhos no rosto. O que lhe sobre da vida será um presente.
Eduardo
Galeano. Tradução de Cecilia Zokner

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