domingo, 17 de maio de 1992

As naus


 A Victoria estava tão maltratada que a cada dia avançava menos e era um milagre que continuasse sobre a água. Além disso ia tão inclinada e com as velas tão esfarrapadas que tinha se tornado ingovernável.

E, assim, chegava a Sanlúcar de Barrameda de onde partira. Para que pudesse avançar o pouco de distância que ainda faltava para atracar, a tripulação jogou no mar o traquete, a vela ré, o cabrestante, a âncora, os relógios, o astrolábio, os compassos e os mapas.
Das cinco naves que haviam partido sob as ordens de Fernão de Magalhães no dia 20 de setembro de 1519 para um rumo que apenas ele conhecia, só a Victoria voltara. Partiram valentes, levadas pelo vendaval para longe da costa, as  negras proas na sua louca carreira desapareciam sob as ondas para emergir triunfantes depois, escorrendo água por todos os lados.
Com elas, Fernão de Magalhães queria chegar, viajando rumo Este ao Arquipélago das Especiarias onde as árvores do cravo eram fonte de riqueza.
Três anos durou a viagem:cinco negras naus abrindo-se passos pressurosas em direção aos confins do mundo desconhecido e mais além.
Bosque de carvalho haviam sido – mais de mil altos, robustos carvalhos - que, transformados em frágeis madeirames, foram postos a flutuar sobre o mar: a Trinidad, nau capitã, a Santiago, a San Antonio, a Concepción e a Victoria com suas velas -  enormes pétalas de fazenda branca -  que o vento fazia como que florescer.
Nas tempestades quando o mar se encrespa e aumenta a força das ondas, elas parecem se quebrar; nas calmarias, se imobilizam como que pousadas em espelho de cristal azul. E manada de cavalos selvagens, negros e reluzentes de espuma, correndo desenfreadamente na direção do nada, elas parecem obedecer aos ventos.
Cruzam o Equador, depois navegam por mares frios. A Santiago naufraga no sul do Continente, antes de chegar ao Pacífico. A San Antonio se perde e a sua tripulação, num dos canais do Estreito de Magalhães. Depois de chegar às ilhas das Especiarias e àquela que os espanhóis chamam Maluco e ancorar em águas calmas, devem partir às pressas e navegar e navegar sem sentido. Então, a Concepción, a das mais brancas e lindas velas  a que já fora bela como uma noiva, que já deslizara sobre o mar com   a mágica elegância de um cisne foi queimada por não mais poder navegar.
Ao destino, Sanlúcar de Barrameda, no dia 6 de setembro de 1522, chegou a Victoria. Ela cheira a podre, a cabos ressecados, a bronzes carcomidos pela ferrugem, a velas infestadas de fungos, a porões vazios, a urinas e excrementos, cheira, também a sonhos destroçados. Ao sal de muitos mares. E a raivas, medo e desesperança.
Dos duzentos e cinqüenta homens, seus tripulantes, regressaram dezoito. Fernão de Magalhães, o capitão, havia dito:  depois de nossa viagem o mundo não será o mesmo.
Com eles haviam levado mil espelhos, pequenas contas de vidro e guizos e pulseiras de cobre e de latão e tecidos coloridos. Por “esses dons de sua civilização” transformaram o destino dos homens que os recebiam. Deles obtiveram em troca, verdadeiros tesouros que lhes havia prodigalizado a natureza.
Da empresa, anunciada por Fernão de Magalhães como a maior que o homem já tinha então conhecido, os  homens voltaram  pobres e famintos. Tinham lutado e sofrido. Tinham circunavegado a Terra.
Sobre eles e suas cinco naus é o romance Maluco do uruguaio Napoleón Baccino Ponce de León, Prêmio Casa de las Américas 1989.
Traduzido por Eric Nepomuceno, a Companhia das Letras, para grande proveito dos brasileiros, acaba de publicá-lo.

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