A Victoria estava tão maltratada que a cada
dia avançava menos e era um milagre que continuasse sobre a água. Além disso ia
tão inclinada e com as velas tão esfarrapadas que tinha se tornado
ingovernável.
E, assim, chegava a Sanlúcar
de Barrameda de onde partira. Para que pudesse avançar o pouco de distância que
ainda faltava para atracar, a tripulação jogou no mar o traquete, a vela ré, o
cabrestante, a âncora, os relógios, o astrolábio, os compassos e os mapas.
Das cinco naves que haviam
partido sob as ordens de Fernão de Magalhães no dia 20 de setembro de 1519 para
um rumo que apenas ele conhecia, só a Victoria voltara. Partiram valentes,
levadas pelo vendaval para longe da costa, as negras proas na sua louca carreira
desapareciam sob as ondas para emergir triunfantes depois, escorrendo água por
todos os lados.
Com elas, Fernão de Magalhães
queria chegar, viajando rumo Este ao Arquipélago das Especiarias onde as
árvores do cravo eram fonte de riqueza.
Três anos durou a viagem:cinco negras naus abrindo-se passos
pressurosas em direção aos confins do mundo desconhecido e mais além.
Bosque de carvalho haviam
sido – mais de mil altos, robustos carvalhos - que, transformados
em frágeis madeirames, foram postos a flutuar sobre o mar: a Trinidad, nau
capitã, a Santiago, a San Antonio, a Concepción e a Victoria com suas velas - enormes
pétalas de fazenda branca - que o
vento fazia como que florescer.
Nas tempestades quando o mar
se encrespa e aumenta a força das ondas, elas parecem se quebrar; nas
calmarias, se imobilizam como que pousadas em espelho de cristal azul. E manada de cavalos selvagens, negros e
reluzentes de espuma, correndo desenfreadamente na direção do nada, elas parecem obedecer aos ventos.
Cruzam o Equador, depois
navegam por mares frios. A Santiago naufraga no sul do Continente, antes de
chegar ao Pacífico. A San Antonio se perde e a sua tripulação, num dos canais
do Estreito de Magalhães. Depois de chegar às ilhas das Especiarias e àquela
que os espanhóis chamam Maluco e ancorar em águas calmas, devem partir às
pressas e navegar e navegar sem sentido. Então, a Concepción, a das mais brancas e lindas velas a que já fora bela como uma noiva, que já deslizara sobre o mar com
a mágica elegância de um cisne
foi queimada por não mais poder navegar.
Ao destino, Sanlúcar de
Barrameda, no dia 6 de setembro de 1522, chegou a Victoria. Ela cheira a podre, a cabos ressecados, a
bronzes carcomidos pela ferrugem, a velas infestadas de fungos, a porões
vazios, a urinas e excrementos, cheira, também a sonhos destroçados. Ao sal de
muitos mares. E a raivas, medo e desesperança.
Dos duzentos e cinqüenta
homens, seus tripulantes, regressaram dezoito. Fernão de Magalhães, o capitão,
havia dito: depois de nossa viagem o mundo não será o mesmo.
Com eles haviam levado mil
espelhos, pequenas contas de vidro e guizos e pulseiras de cobre e de latão e
tecidos coloridos. Por “esses dons de sua civilização” transformaram o destino
dos homens que os recebiam. Deles obtiveram em troca, verdadeiros tesouros que
lhes havia prodigalizado a natureza.
Da empresa, anunciada por
Fernão de Magalhães como a maior que o homem já tinha então conhecido, os homens voltaram pobres e famintos. Tinham lutado e sofrido.
Tinham circunavegado a Terra.
Sobre eles e suas cinco naus
é o romance Maluco do uruguaio Napoleón Baccino Ponce de León, Prêmio
Casa de las Américas 1989.
Traduzido por Eric
Nepomuceno, a Companhia das Letras, para grande proveito dos brasileiros, acaba
de publicá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário