domingo, 1 de março de 1992

O país dos outros

          Está para ser publicado em Nova Delhi, um livro em que o mesmo conto aparece em dez idiomas diferentes. Cinco ocidentais (espanhol, inglês, francês, alemão, português) e cinco idiomas da Índia (hindi, marati, punjabi, bengali, e urdu).

        Um acontecimento literário assaz raro e que poderá representar uma importante fonte de estudos para a Literatura Comparada ao permitir comparar soluções encontradas pelos diferentes tradutores na transposição de um idioma para outro e observar diferenças originadas de posições ideológicas próprias de cada grupo social e que o tradutor repetirá ou contestará.

        O conto do colombiano David Sánchez Juliao foi escrito em 1973, em Lorica, cidade onde nasceu. Tinha, então, 28 anos e “Por qué me llevas al hospital en canoa, papá?” é um texto que anuncia o domínio da narrativa e a beleza de expressão que irá fazer de seu romance Pero sigo siendo el rey uma das obras mais bonitas e criativas da atual novelística latino-americana.
          Iniciando-se pela pergunta que lhe dá o título - pai, por que me leva de canoa para o hospital? - o conto se constrói nessa resposta que é dada aos poucos pelo personagem interpelado. De sua voz, de seu gesto, de sua atitude emergem os fatos, uma determinada e precisa ética de vida e as relações sociais estabelecidas.

          Um camponês, agredido pela polícia por intentar invadir terra alheia, é levado pelo pai ao vilarejo para ser tratado. Por que pelo rio e não pela estrada, viagem que demandaria menos tempo, é a pergunta que lhe faz o filho junto com as queixas pela dor que sente.
          Mas, o pai lhe responde que deve agüentar (agüente, filho, agüente como um macho), que deve ser forte como o pai (Agüente, filho, agüente como um macho filho de quem é) e, deve, também, pagar porque infringiu as normas paternas (não vai morrer, agüente. Trago você pelo rio para que sofra, para que assim pague a raiva que me deu pelo que você fez.)
          Normas essas baseadas no Direito e que o filho como passarinho rebelde ousa transgredir. As leis devem ser respeitadas, porque por alguma coisa foram feitas, diz o pai e embora precisando (por acaso sabe o que é ter mulher e dois filhos e não ter terra?) não se invade a terra dos outros. E, se a autoridade que deve zelar pelo cumprimento da lei assim o faz, ainda que usando de violência, está no seu direito.
          Um desejo de crer na lei que, no entanto, não tira do pai a lucidez, nem o seu próprio ato de rebeldia: chegar ao vilarejo pelo rio num dia de feira para que todos vejam o filho ferido; ir até a rádio local para que se noticie o acontecido; procurar o Prefeito para comunicar a agressão que seu representante efetuara não são atos de um homem passivo.

          A sede e o calor não impedem que a voz lhe saia seca e dura para responder de pé, diante da escrivaninha do Prefeito quando este lhe pergunta o porquê da agressão: é-lhe suficiente saber que seus policiais dão machadadas nos cidadãos. E isso nem sequer é feito de acordo com a lei. Por isso lhe trouxe meu filho até aqui para que vissem que não é mentira. Porque nesse país de vocês, a gente não pode se ater nem à demandas nem à razões.

          O Prefeito e o Tenente que lhe garantem a integridade física apenas se olham, sorriem, dão de ombros e franzem o sobrolho. Silêncio e pouco caso é a punição que recebe, por sua vez, o pai pela sua rebeldia.

          Então, ele parte com o filho às costas, agora para enfrentar a “outra confusão”, a de conseguir ser tratado, dignamente, no hospital. Não porém, sem antes exclamar: Belo país, este de vocês!

          Feliz expressão para definir essa fronteira imaginária que, mais forte que qualquer muralha, mantém irremediavelmente separados os habitantes de um mesmo país. Dita por um pobre e maltratado camponês deixa, contudo, os outros indiferentes e permite ao Prefeito dizer:

- O senhor que recém chegou aqui, Tenente, tem que ir se acostumando com as loucuras das pessoas daqui.
É sempre assim? - perguntou o Tenente.
-São coisas que acontecem. Mas esse homem está mais louco do que todos os outros.

          Acomodados no espaço governamental, eles ficaram. Sob o sol e o calor, o camponês caminha com o filho ferido em busca de socorro.

          Cidadãos todos de um mesmo país, vivendo, como se vivessem em países diferentes.

          Para alguns, no Continente, o país é sempre dos outros.

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