domingo, 22 de março de 1992

Paraíso ultrajado

Guanahaní fue la primera
en esta historia de martirios.

           Pablo Neruda diz: chegam procurando as ilhas. E Guanahaní foi a primeira. Corria o ano de 1493.
 
           Na América sem nome, chegam os conquistadores. Chamam-se Arias, Reyes, Rojas, Maldonados, simplesmente filhos das fomes invernais peninsulares. Ou Cortés, Alvarado, Balboa, Ximénez de Quesada, Pizarro, Valverde, Valdívia, os que ordenaram a cruel conquista sem lei em nome do rei e de Deus.
 
           Los carniceros desolaram las islas, assim Neruda lhes anuncia a chegada. E essa História e os malefícios por ela instaurados são contados nos vinte e cinco poemas que compõem o terceiro canto do Canto general.
 
           Em barcos vieram os homens para realizar, gloriosamente talvez, a conquista da América, diz a História quase sempre calando o ultraje a que foi submetida a natureza americana, a que foram submetidos os homens que eram seus donos.
 
           E os conquistadores - os famintos ou os velhacos - atropelam jasmins, estraçalham a terra que é sacudida, ferida, incendiada; niños carniceros, se atrevem às destruições de tudo o que nela encontram. Arrasam choças e religiões e livros sagrados. E os homens que os presenteiam e lhes prestam homenagens de ouro e flores são amarrados, golpeados, feridos, despedaçados, mordidos pelos cães, queimados nas fogueiras. Ou, sobrevivem como escravos.
 
           É pelas mãos dos verdugos e ladrões - Pizarro, o maioral porcino; Almagro, antigo e torto; Cortés, raio frio, coração morto; Valdivia, coração traidor, chacal podre - que o mapa do Novo Mundo se completa, desde a península do México até o extremo sul do Continente.
 
           Em Cholula, os melhores filhos do Reino, atraiçoados, se esvaem em sangue, feridos por armas assassinas; em Yucatán, por ordem de um bispo, em fumaça se transformam os livros contendo a acumulada sabedoria milenar; no Peru arrancam, cobiçosos, os metais nobres e condenam à morte o Inca; no Chile cortam a cabeça dos sete caciques que acreditaram numa embaixada de paz; na Colômbia, degolam o príncipe e o deixam insepulto, os olhos tornados para o céu.
 
           Histórias mergulhadas nessa dor da América que é lembrada por poucos, negada por muitos e, assim, reduzida ao silêncio. Silêncio da morte ou da servidão às quais foram condenados os Antigos donos do Continente: o que lavrou a terra, o que ergueu muralhas, o que domou, o que teceu, o que trabalhou o barro ou o ouro. Jazem todos sepultados no abismo dos tempos e é a eles que invoca o poeta:
 
           Mostrai-me o vosso sangue e vosso sulco,
           dizei-me: aqui fui castigado,
           porque a jóia não brilhou ou a terra
           não entregou a tempo a pedra e o grão:
           assinalai-me a pedra em que caíste
           e a madeira em que os crucificaram,
           acendei-me as velhas pederneiras,
           as velhas lâmpadas, os látegos grudados
           através dos séculos nas chagas
           e os machados de brilho ensangüentado
           Eu venho falar por vossa boca.
 
           Então, nascem esses poemas alimentados de verbos tristes e de sombrias expressões onde se aninha o épico de uma luta heróica e grandiosa que no Continente é destituída de glória e eternamente perdida.

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