O número 157, referente a
outubro-dezembro de 1991, da Revista Iberoamericana é dedicado à Literatura da Nicarágua. Está dividido em quatro rubricas - ensaio, poesia, narrativa e teatro - num total de onze artigos de qualidade bastante desigual, como, aliás, o observa o próprio organizador, Jorge Eduardo Arellano, notando ainda que a essa desigualdade não está alheia à estagnação do estudo científico da literatura nicaragüense nos anos oitenta.
Uma estagnação certamente
normal na década em que o país passou mergulhado numa Revolução que, além de
enfrentar-se com os obstáculos naturais sem ter para isso os mínimos recursos,
viu-se obrigada a despendê-los na defesa das trangressões inspiradas pelo país
que se crê o senhor dos demais.
Se, no Continente, nenhum
país escapa à sanha dominadora e à submissão que os Estados Unidos impõe a
todos cujas riquezas lhe interessem, aqueles da América Central tiveram a sua
História determinada por imposições sempre baseadas na velha frase de La
Fontaine para concluir a fábula do Lobo e o Cordeiro - a razão do mais forte é
sempre a melhor - e que, na verdade, se constitui, apenas, uma sucessão de
injustiças e de atrocidades.
A Nicarágua, entre os países
da América Central, no dizer de Marcel Niedergang, o jornalista francês
especialista em América Latina, foi sempre a mais visada pelos Estados Unidos.
Não apenas porque suas riquezas minerais e florestais eram exploradas por
companhias norte-americanas, assim como o seu ouro, mas porque a Nicarágua
pode, pelo seu contorno geográfico, controlar o Canal do Panamá.
Um pouco menor do que o
Paraná, sua população onde predominam os mestiços - os considerados brancos se
constituem em apenas 17% - não chega a três milhões de habitantes, 48% dos
quais, antes da década de oitenta ou seja, antes da Revolução Sandinista, era
analfabeta.
No entanto, a Nicarágua é,
hoje, considerada um país de poetas. De cada dez habitantes, diz Eric
Nepomuceno (Nicarágua, um país acossado,
Porto Alegre, L&PM, 1985),
oito são poetas. Todo mundo escreve poesia ele diz. Há ministros poetas e poetas na polícia, na
milícia e nos hospitais; há poetas debruçados sobre complicadíssimas projeções
econômicas e entre intrincadas plantações de feijão; combatentes, carpinteiros,
jardineiros, operários e donzelas, todo mundo escreve poesia naquele país.
Como se tivessem precisado
apenas dos “talleres de poesia”, das “oficinas de poesia” que surgiram
espalhadas no país, resultado do trabalho de Ernesto Cardenal, para se
acreditarem capazes, para serem capazes de poetar.
Ainda nos tempos de Somoza,
o poeta havia desenvolvido uma experiência em que os camponeses puderam se
expressar pela pintura e pela palavra. Na comunidade de Solentiname, onde
aconteceu a experiência diz Eric Nepomuceno, camponeses viraram pintores de belezas infinitas e poetas de vôo alto;
nas telas e nas folhas nascia outra visão da vida e do mundo; e havia também
esculturas e tudo era conversado e discutido. Ali, em Solentiname, os
camponeses começaram a despertar.
Então, a comunidade, as
telas e os poemas e alguns artistas camponeses foram destruídos pelos soldados
de Somoza.
Com o triunfo da Revolução
Sandinista, a idéia de oferecer um espaço para que do povo surgissem poetas,
pintores, escultores, tornou-se possível. E verdadeiros laboratórios de arte se
espalharam por todo o país. A poesia surgiu espontânea.
Evidentemente, uma poesia
circunstancial e que reflete sobre o cotidiano. Expressão de quem só
recentemente teve acesso à palavra depois de permanecer calado por muito tempo.
Uma poesia que, emergindo de experiências muito recentes e vivas, não necessita
de paradigmas clássicos para existir ou atingir perfeições.Evidentemente, também, uma
expressão que não irá apresentar os mesmos níveis de qualidade, sobretudo se
for medida pelos parâmetros com que a elite do Continente costuma medir tudo o
que a rodeia e que nada mais é do que repetir modelos válidos para o Primeiro
Mundo.
Que um país extremamente
pobre e explorado tenha conseguido erradicar o analfabetismo crônico em poucos
meses - louve-se aqui a adoção do método Paulo Freire - e com isso permitir a
eclosão de uma expressão artística, até então destinada somente à minoria rica
e poderosa, parece algo de miraculoso nesse tempo de luta empreendida para dar
saúde e moradia e educação e comida a todos os nicaragüenses e assim fazer de
seu país um país justo.
Tão miraculoso que
perfeitamente justifica a estagnação do estudo literário científico se esse,
obnubilado por conceitos e modelos alienígenas, se torna incapaz de perceber o
que no seu próprio espaço acontece e incapaz de mensurá-lo liberto de
preconceitos de medíocres e pretensiosos atrelamentos.

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