domingo, 1 de setembro de 1991

Os condenados


            Há o proprietário das terras que não teme exauri-las, nem exaurir os índios que nela vivem; há o administrador da propriedade que não coloca em dúvida as ordens que recebe e tampouco se dá conta que só defende interesses alheios; há o representante da Igreja que nada difere dos outros senão pela proteção que lhe confere a instituição a qual pertence. E, há os índios.

            Com uma ou outra pequena variação, os personagens, as situações, a trama, permanecem fiéis àquelas dos demais romances indianistas do Continente. Igual, principalmente, essa intenção de mostrar para os que pertencem à classe dominante o que, certamente, eles não ignoram mas que sempre mostraram compreender, apenas, à meias.

            O que diferencia Huasipungo  dos outros romances é ter seu autor resistido à tentação de idealizar o personagem que ele quer defender, descrevendo-o nos seus mais trágicos e repugnantes traços. Sobretudo, ter conferido a esses medrosos, famintos, dominados, infelizes seres que retrata, estatuto de gente.

            André Chiliquinga poderia viver como um ser humano. Mas, deve carregar nas costas o patrão para que não enlameie os pés; e, viver escondido porque constituiu família sem permissão do administrador das terras; e trabalhar onde não quer; e ficar manco para toda a vida porque ferido no trabalho não recebe a assistência necessária; e pagar o prejuízo que os animais do patrão fizeram no plantio ao invadir o terreno cultivado que ele deveria cuidar.

            Nesse universo que lhe coube viver e no qual é tratado como objeto, ele busca, sozinho, as próprias soluções. Desobedecendo ao administrador das terras ao escolher sua mulher e ignorar, para se unir a ela, o ritual exigido pela Igreja. Fugindo do acampamento de trabalho para ir até em casa ver a mulher e o filho. Desenterrando uma rês morta para levar comida para a família, quando o pagamento pelo seu trabalho lhe é negado. Roubando uma rês viva para poder pagar o enterro da mulher. Matando.

            Cerceado por normas e leis que jamais o protegem e sempre o condenam, a cada infração cometida corresponde um castigo. Mas, quando a miséria e a ignorância lhe matam a mulher, André Chiliquinga começa a compreender o alcance de todas as injustiças e solta as palavras reprimidas por ele  e pelos seus durante séculos: A terra é nossa! No entanto, os outros, com as armas na mão, são mais fortes. É diante desse invasor armado que ele abre a porta de sua casa com o filho no braço, perde a luta recém começada, e como herói sombrio que se rebela, perde a vida.

            Pouco antes, na imundície de sua choça, espectador da enfermidade conspurcada de vômitos e de fezes, de sua mulher, ficara sem saber o que fazer para socorrê-la. Nele couberam, apenas, a solidão do pobre diante da adversidade e o sofrimento submisso diante do fado inevitável.

            Na ficção do Continente, poucos personagens tiveram, como ele, tanta miséria e tanta dor. Poucos, foram descritos em tons tão sombrios e movendo-se num universo tão sujo e patético. Mas, ainda, assim, é um personagem com a dignidade daquele que não se corrompe, nem quando rouba, nem quando mata.

            Ao morrer, André Chiliquinga se engrandece e se ilumina: Apertou o menino sob o braço, avançou para fora, tentou maldizer e gritou com  grito que foi  se gravar no mais duro das balas: a terra é nossa! Logo se lançou para a frente com ânsia de afogar a estúpida voz dos fuzis. Em coro com os seus que ele sabia ali perto, repetiu: a terra é nossa!

            Jorge Icaza ao contar, em 1934, essa sua história do pobre herói desarmado, faminto e pobre, sabia que ele estava  condenado. Também, Jorge Icaza sabia por quem: Sobre o silêncio, sobre o protesto amordaçado, a bandeira pátria do glorioso batalhão flameou  com ondulações de gargalhada sarcástica. E depois? Os senhores   gringos.

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