Há
o proprietário das terras que não teme exauri-las, nem exaurir os índios que
nela vivem; há o administrador da propriedade que não coloca em dúvida as
ordens que recebe e tampouco se dá conta que só defende interesses alheios; há
o representante da Igreja que nada difere dos outros senão pela proteção que
lhe confere a instituição a qual pertence. E, há os índios.
Com
uma ou outra pequena variação, os personagens, as situações, a trama,
permanecem fiéis àquelas dos demais romances indianistas do Continente. Igual,
principalmente, essa intenção de mostrar para os que pertencem à classe
dominante o que, certamente, eles não ignoram mas que sempre mostraram
compreender, apenas, à meias.
O
que diferencia Huasipungo dos
outros romances é ter seu autor resistido à tentação de idealizar o personagem
que ele quer defender, descrevendo-o nos seus mais trágicos e repugnantes
traços. Sobretudo, ter conferido a esses medrosos, famintos, dominados,
infelizes seres que retrata, estatuto de gente.
André
Chiliquinga poderia viver como um ser humano. Mas, deve carregar nas costas o
patrão para que não enlameie os pés; e, viver escondido porque constituiu
família sem permissão do administrador das terras; e trabalhar onde não quer; e
ficar manco para toda a vida porque ferido no trabalho não recebe a assistência
necessária; e pagar o prejuízo que os animais do patrão fizeram no plantio ao
invadir o terreno cultivado que ele deveria cuidar.
Nesse
universo que lhe coube viver e no qual é tratado como objeto, ele busca,
sozinho, as próprias soluções. Desobedecendo ao administrador das terras ao
escolher sua mulher e ignorar, para se unir a ela, o ritual exigido pela
Igreja. Fugindo do acampamento de trabalho para ir até em casa ver a mulher e o
filho. Desenterrando uma rês morta para levar comida para a família, quando o
pagamento pelo seu trabalho lhe é negado. Roubando uma rês viva para poder
pagar o enterro da mulher. Matando.
Cerceado
por normas e leis que jamais o protegem e sempre o condenam, a cada infração
cometida corresponde um castigo. Mas, quando a miséria e a ignorância lhe matam
a mulher, André Chiliquinga começa a compreender o alcance de todas as injustiças
e solta as palavras reprimidas por ele e
pelos seus durante séculos: A terra é
nossa! No entanto, os outros, com as armas na mão, são mais fortes. É
diante desse invasor armado que ele abre a porta de sua casa com o filho no
braço, perde a luta recém começada, e como herói sombrio que se rebela, perde a
vida.
Pouco
antes, na imundície de sua choça, espectador da enfermidade conspurcada de
vômitos e de fezes, de sua mulher, ficara sem saber o que fazer para
socorrê-la. Nele couberam, apenas, a solidão do pobre diante da adversidade e o
sofrimento submisso diante do fado inevitável.
Na
ficção do Continente, poucos personagens tiveram, como ele, tanta miséria e
tanta dor. Poucos, foram descritos em tons tão sombrios e movendo-se num
universo tão sujo e patético. Mas, ainda, assim, é um personagem com a
dignidade daquele que não se corrompe, nem quando rouba, nem quando mata.
Ao
morrer, André Chiliquinga se engrandece e se ilumina: Apertou o menino sob o braço, avançou para fora, tentou maldizer e
gritou com grito que foi se gravar no mais duro das balas: a terra é
nossa! Logo se lançou para a frente com ânsia de afogar a estúpida voz dos
fuzis. Em coro com os seus que ele sabia ali perto, repetiu: a terra é nossa!
Jorge
Icaza ao contar, em 1934, essa sua história do pobre herói desarmado, faminto e
pobre, sabia que ele estava condenado.
Também, Jorge Icaza sabia por quem: Sobre
o silêncio, sobre o protesto amordaçado, a bandeira pátria do glorioso batalhão
flameou com ondulações de gargalhada
sarcástica. E depois? Os senhores
gringos.

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