domingo, 8 de setembro de 1991

De uma técnica narrativa

            Em fins de 1920, Francisco Espínola começou a escrever Don Juan el Zorro. Os anos foram passando e, entretanto,  ele publicou Raza ciega, Sombras sobre la tierra e muitos contos, entre os quais, a verdadeira obra prima que é “Rodriguez”. Quando morreu, em 1973, não havia terminado Don Juan el zorro. O romance era, ainda, uma verdadeira “montanha de papel” de folhas mimeografadas ou manuscritas. Nelas, ou em primeira ou em segunda redação, partes do romance, esquemas a serem desenvolvidos, anotações para completar alguma cena ou algum personagem.     Foi esse material que Arturo Sergio Visca ordenou para que a obra de Francisco Espínola pudesse, finalmente, e depois de tantas vezes anunciada, vir à luz em edição da Arca de Montevidéu.

            Baseada nas histórias populares do Rio da Prata que tem como protagonista a raposa, Don Juan Zorro constrói um mundo em que animais, guardando suas principais características – ou timidez, ou esperteza ou ferocidade – aparecem personificadas e repetindo a estrutura social dos homens da campanha uruguaia do fim do século passado.

            Quando em sessão pública no Teatro Sodré, de Montevidéu, Francisco Espínola efetuava leitura de alguns capítulos dessa obra inédita, ele se comprazia, também, em explicar algum aspecto da elaboração da obra, de seu tema, de seu estilo, de seu ritmo. Sobre a razão profunda que o levou a escrevê-la: tornar conhecido e amado esse homem do interior do Uruguai que já pertence ao passado. Recria tipos, paisagens, situações e fixa esse falar que os ouvidos citadinos consideram popular e tosco, assumindo-o, também, como narrador e não somente na voz dos personagens.   A tal procedimento que desafia as normas gramaticais, se junta o uso de “técnicas complexas e arriscadas”, segundo expressão do próprio Francisco Espínola, que originam o que ele considera verdadeiras contravenções e dá como exemplo a descrição excessivamente desproporcionada de um móvel: a escrivaninha da delegacia.

            A delegacia é aquela pequena delegacia de cidade do interior nos tempos idos. A sala do delegado, única peça a ter piso de ladrilhos,  com o escudo pátrio pendurado na parede,umas quantas cadeiras e a escrivaninha: Uma veterana escrivaninha preta onde se expunham um tinteiro seco, uma caneta enferrujada, um livrão – aparentemente um código- de boas capas vermelhas.  Seguem-se, então, duas páginas em que, aparentemente, é  da escrivaninha que está a se tratar. Porém,  muito longe desse universo estão as elaboradas e longuíssimas descrições que são o coração do “noveau roman” francês. Porque, sem dúvida, o que interessa ao narrador de Don Juan el zorro não é eternizar, literariamente, um objeto mas esse grupo social que se move ao redor dele. Para descrevê-lo, nessa seqüência narrativa que se passa na delegacia, o faz a partir das gavetas da escrivaninha. Uma escrivaninha “povoada de gavetas”. No entanto, desde que chegara ao local, ninguém sabia muito bem para que serviam. Então, a grande, do meio, suportava papéis já meio amarelados. Uma outra, pequena, continha o fumo de rolo e a palha para o cigarro do delegado. A mais de baixo e a mais funda, estava cheia de ninharias. As demais, todas vazias. Essas objetivas informações, certamente, não são suficientes para encher o restante das páginas que lhe são dedicadas. Nelas, é explicado porque só uma gaveta bastava para “suportar papéis” e,  principalmente, com minúcia detalhada, o conteúdo da gaveta cheia.

            Na verdade, o que dessa explicação ou desse detalhar emerge é um jocoso quadro cujo intuito é retratar a autoridade.

            Por não saber ler, o delegado elimina os relatórios. Daí o não precisar guardá-los. Para se garantir contra eventuais denúncias e mostrar serviço, ele “arquiva” na gaveta os mais humildes e heterogêneos objetos que subtraiu dos pequenos ladrões que pôde prender.

            A partir das relações dos fatos anti-sociais que o delegado se propõe a dar fim ou a partir da relação dos objetos roubados,  usos e costumes do desaparecido mundo gaúcho surgem do passado.

            Entre uma gaveta e outra é um fervilhar de vida que Francisco Espínola, de acordo com a sua “intenção profunda” deseja ver  emancipado do texto ficcional para viver no coração do leitor.
            Se o leitor for puro e ele um bom escritor, acrescenta, esse passar da ficção para a vida se realiza. Sobretudo, dir-se-ia, num Continente em que, por vezes, as fronteiras

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