domingo, 15 de setembro de 1991

A burla


            Francisco Espínola disse que aconteceu no século passado e como narrador da história, ele deve saber. Mas, certamente, foi no tempo em que os bichos falavam e que nos campos do sul reinava, ainda, a desordem.  Os homens se perseguiam e lutavam por boas ou por causas más.

            Na ficção do narrador uruguaio, os animais lhe imitam os gestos, as certezas e as palavras. Há a donzela inocente, aquele que a defende e o que persegue o defensor. Uma história triste que tristemente, acaba. Porém, na tragédia das injustiças ( e mortes e lágrimas), Francisco Espínola insere a burla. Uma burla sem inocência porque se cristaliza, sobretudo, na figura do delegado e de suas andanças em busca do fugitivo.

            Descrevendo, minuciosamente, o seu despertar de ser humano – o valente tigre-delegado desse universo de animais, estira os braços de sob as cobertas, se espreguiça, boceja, abre os olhos – e  seus gestos para  sair da cama e para se vestir, Francisco Espínola inicia a desmistificação da autoridade. Desmistificação que irá continuar diante da explicação desse diário mau humor do delegado: Havia contrabandeado muito. Por isso mesmo sempre andava de lua. Ele sem querer, sem perceber bem a causa, ao pressentir milicos se enfurecia. E, também, diante de seus sucessos profissionais, perseguindo faltosos campo afora. O que faz metido numa esplendorosa jaqueta de gala desde que seu ajudante de ordens lhe queimara a jaqueta de serviço e com medo das conseqüências, montara a cavalo e fugira para o Brasil. Mas, é no capítulo VII que El Tigre e seus milicos em ação, se mostram, verdadeiramente, caricaturais. O personagem a quem buscam prender os precedera e há muito tempo – o suficiente para atrair a simpatia dos freqüentadores habituais – já estava no botequim. Quando o delegado chega, o soldado que ele havia enviado para dar a pista do perseguido, já havia sido desarmado e preso. Também, já fora convencido “pelos outros” de que ser soldado é a última coisa que pode acontecer a alguém e havia mudado de bando. Mas, El Tigre ainda não sabia disso e, confiante, entra na venda. Começa a desarmar os presentes, enquanto lá fora, a  sentinela que deixara, fora rendida e seu cavalo e os de seus homens, soltos, corriam em disparada. Nem chega a tirar as armas de todos, quando, por sua vez, é rendido pela sentinela dos outros e encerrado num quarto com janelas gradeadas. Preso como um rato e, esbravejando, ele ficou vendo partir, a galope, os fora de lei.

            Na longa seqüência narrativa que dá conta desse enfrentamento entre o delegado e aquele a quem persegue, a troça é uma constante e se prende, quase sempre, aos tipos e as suas reações.

            Profundamente ingênuo e com seus atos, muitas vezes, presos nas próprias intenções, sem  limite é a admiração do delegado diante de seu fracasso e das armas que lhe são apontadas: Que escândalo! Olha as coisas que a gente tem que passar na vida!, ele exclama com as mãos para o alto.

            Ilimitada, também, será a sua necessidade de vingança. O riso que provoca no capítulo VII, El Tigre fará pagar bem caro. Com um tiro de revólver ele mata, no capítulo X, a boa e inocente donzela Mulita.  Então, o parêntese do riso se fecha em Don Juan el zorro (Montevidéu, Arca, 1984).

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