segunda-feira, 26 de agosto de 1991

Vozes em uníssino

           Há cinquenta anos atrás, um júri do qual fazia parte John dos Passos, lhe concedia o Prêmio do Concurso Romance Latino-americano, promovido, nos Estados Unidos,  por dois editores norte-americanos e um editor inglês. Ciro Alegria, peruano,  estava no Chile expatriado por razões políticas e foi lá, que uma editora chilena publicou El mundo es ancho y ajeno. Sete anos depois, traduzido para muitos idiomas, em espanhol, já estava na sua sétima edição. Tal sucesso de um livro latino-americano (o próprio Ciro Alegría o considerou  um fenômeno digno de estudos) se explica, certamente, - e isto não põe em causa a qualidade da obra -  por esse reconhecimento de valor, outorgado num país, que sem dúvida, determina tudo o que acontece ou deve acontecer no Continente. E foi, certamente, o prêmio recebido, o responsável pela tradução de El mundo es ancho y ajeno no Brasil onde foi publicado na coleção  “Fogos cruzados” da José Olympio, constituída, exclusivamente, até então, de autores europeus e norte-americanos. Reconhecido no Primeiro Mundo, El mundo es ancho y ajeno teve as portas das editoras abertas e, logo, também as das Universidades latino-americanas e européias onde passou a ser estudado. Mais tarde, Ciro Alegría se refere às inumeráveis perguntas sobre o romance e que ele acredita de seu dever, responder. E, efetivamente, o faz no prólogo que escreveu para a décima edição da Losada. Entre as várias questões que responde – elogios, críticas, interrogações sobre personagens e situações do romance, - ele conta sobre as condições que permitiram a composição da obra, se alonga sobre as vivências que a alimentaram e, principalmente, aquelas que constituíram a sua gênese, esses primeiros anos passados no interior do país, na região andina: Mulheres da raça milenária me embalaram nos seus braços,  me ajudaram a andar; com as crianças índias, brinquei quando era pequeno; ficando maior, trabalhei com peões índios e mestiços nos trabalhos agrários   e rodeios. Nos braços de uma moça trigueira se alvorotou em mim o amor como um amanhecer quíchua. E na áspera terra de sulcos abertos sob os meus pés e severas montanhas diante de mim, aprendi a positiva lei do homem andino. Soube, também de sua dor.

            A partir, então, desse profundo e emocionante conhecimento, se efetivará a construção do romance: muitos personagens, muitas situações, fortes e belas pinceladas da paisagem andina, ritos ancestrais, descrições de colheitas e rodeios, dos trabalhos nas plantações de coca e nos seringais acompanham  Rosendo Maqui, o chefe índio, na sua luta para defender a terra da comunidade.

            Uma narrativa tradicional, feita por um narrador que sabe tudo de seus personagens quando assim o deseja. E que permite que se diluam as fronteiras estabelecidas entre narrador e autor, consentindo a presença, na primeira pessoa plural, dessa voz intrusa de que fala o crítico argentino Oscar Tacca em Instancia de la novela (Buenos Aires, Marymar, 1980): retomando o Michel Butor de L’espace du roman, Oscar Tacca considera “voz intrusa” aquela que no romance explicita dúvidas, interrogações, apreciações, reflexões, generalizações,  à margem do texto narrativo, como se o autor não confiasse inteiramente no narrador.

            Em El mundo es ancho y ajeno, a “voz intrusa” enuncia reflexões sobre a própria narrativa e, por vezes, dessa narrativa é diretriz. Ou, retardando informações por não considerar oportuno oferecê-las ou porque pretende fazê-lo mais a diante; ou, optando pela introdução de uma nova história; ou, confessando ignorância sobre um determinando personagem ou até sobre a passagem do tempo.

            Ao se servir desse recurso narrativo, Ciro Alegria mascara uma afetividade que irá, então, emergir das palavras do narrador. Dois exemplos bastam: “a voz intrusa” como que por acaso, diz ignorar quanto tempo – seis meses, dois anos? -  passou desde que viu Rosendo Maqui pela  última vez. Anteriormente, hesitara na apelação do personagem porque as palavras possíveis  não seriam completas para  nomeá-lo. Ao narrador caberá contar da terrível solidão de Rosendo Maqui na prisão. Também, será ele que irá usar sempre  que se referir a Rosendo Maqui dos termos mais elogiosos.

            Esse entrelaçar de vozes que ora se aproximam ora se distanciam, cria um universo que deve permanecer intocado mas, também, transformar-se muito para poder ser justo. Assim o anseia a emoção vivida daquele que narra.

            Foi esse universo e foram esses anseios que percorreram o mundo por obra e graça de um concurso. Para a glória do Continente, a bela voz de Ciro Alegria se fez, então, ouvir.

           

 

 

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