domingo, 18 de agosto de 1991

O romance indianista:El mundo es ancho y ajeno

            El mundo es ancho y ajeno foi traduzido para onze idiomas, inclusive  o português. No Brasil, país de reduzidos leitores, muitos dos quais escolhem suas leituras nas listas dos best sellers e, provavelmente, ignoraram os definitivos elogios que lhe propiciou o New York Times ( sem dúvida , algo fundamental para decidir os hesitantes), poucos devem ter sido, no entanto,  os que leram esse romance de Ciro Alegria, publicado, em 1944, pela José Olympio.

            Entre o grande número de romances indianistas que surgiram no Continente depois da publicação de Aves sin nido da peruana Clotilde Matto Turner, em 1889, El mundo es ancho y ajeno, ganhador do “Prêmio Concurso de romances latino-americanos, 1941”, se destaca  pelo  número de edições em língua espanhola .Na década de sua publicação, já havia vendido duzentos mil exemplares, sem contar aqueles das edições piratas tão correntes na América Latina.

            Uma infância e uma adolescência passadas nos Andes peruanos, lhe possibilitaram  o grande conhecimento das comunidades indígenas. E, sobretudo, os cuidados que recebeu das índias e as brincadeiras com os pequenos índios, determinaram essa ternura  com que deles se aproxima. Ciro Alegria descreve os índios como homens bons e em harmonia com a terra  que trabalham.

            É essa mesma experiência de uma vida entre os índios que lhe permite ver, com olhos lúcidos, o quanto, no nível individual e coletivo eles ficaram à mercê da vontade dos brancos.

            Em El mundo es ancho y ajeno, essa vontade é expressa por Dom Álvaro Amenábar y Roldán, um senhor todo-poderoso e dono de muitas terras o que não o impede de querer, também, as terras da comunidade indígena de Rumi, afirmando ser o seu legítimo proprietário. Na justiça, a comunidade apresenta os documentos que lhe garantem a propriedade da terra, documentos esses que, por meios criminosos, são queimados pelo latifundiário. Seus desejos, porém, vão além: ele quer as terras, livres dos “comuneros” e para obrigá-los  a sair, rouba-lhes o gado e os acusa de ladrões, criando provas falsas que  só convencem o juiz corrupto. Ainda, consegue enviar para a cadeia o chefe índio Rosendo Maqui cuja velha figura é o elo condutor de uma narrativa que se abre com a palavra“Desgraça”. Rosendo Maqui volta de  uma caminhada pelas montanhas em busca de ervas medicinais para a mulher, quando, diante de seus passos se lhe atravessa uma serpente. Para ele é sinal de desgraça e  embora a tenha matado, não deixa de se repetir que significa o anúncio de desgraças. E, elas não tardam em chegar. Foram tantas que, mais tarde, chegará  à conclusão que tinha sido desgraça demais  para uma cobra só.

            Ao chegar em casa encontra sua mulher morta. Logo, se iniciam as demandas de Dom Álvaro e seus atos de força. Depois, muitas outras que ele nem chegou a saber: as que acompanharam os “comuneros”, expulsos das  terras de Rumi em busca de outro destino nas plantações de coca, nos seringais, nas minas, na fazenda de Solna. Sempre maltratados, explorados e impedidos, pela miséria ou pela morte, de voltarem.

            Na verdade, o alcalde  Rosendo Maqui intuíra sempre que a desgraça maior para a comunidade nunca precisara ser anunciada pelo rastejar de uma serpente. Ela se instalara entre os índios no momento em que os brancos chegaram no Continente.

            Sua própria vida nunca fora isenta de humilhações que, no entanto, jamais o levaram a mudar sua visão de mundo. Impassível ficou diante das ofensas e injustiças dos brancos, como diante de um possível e útil aliado que não seguisse os seus princípios.         Assim, somente aceitaria o bandoleiro Fiero Vasquez entre os seus se ele  passasse a se dedicar ao cultivo da terra. Porque nega a violência que ele e seu bando praticam, tanto quanto duvida de seus resultados. No ataque à fazenda de Dom Álvaro, morrem dois de seus defensores e, então, Rosendo Maqui lamenta: dois pobres como nós, mas extraviados. 

            No entanto, a violência dos bandoleiros lhe poderia, eventualmente, ser grata, pois já vingara a comunidade da traição de um mascate, afogando-o num lamaçal e da corrupção do advogado que falseara os fatos em favor de Dom Álvaro. Recusando essas mortes e outras tragédias – os bandoleiros roubam o dinheiro que o governador havia amealhado nem sempre honestamente, ao longo da vida, desonram-lhe a filha – Rosendo Maqui mantém sem mácula a sua imagem, tornando mais terrível e patética a sua morte.

            A partir de suas lembranças de homem probo – como chegou a ser alcalde, os principais momentos que enfrentou, as vitórias que obteve – e o sofrimento que vive ao enfrentar o latifundiário, vai se fazendo a história da comunidade de Rumi.  Pequenos relatos se lhe acrescentam, registros de festas e rituais, descrições de atividade dos “ comuneros”, do povoado indígena, das plantações, dos tipos humanos e de seu comportamentos, comentários do narrador se inserem  desordenadamente, se ordenam para completá-la

E quando ele morre sob os golpes dos soldados, a história dos índios e de sua comunidade não se extingue. Durou para permitir, ainda, a resistência. Seu filho, já alfabetizado e com diferente visão de mundo, acredita na resistência. A mão armada, com outros “comuneros”, enfrenta a nova tentativa de despojo pretendida por Dom Álvaro. Sua resistência foi sufocada pelas metralhadoras do exército. Mortalmente ferido, se deixa cair diante de sua casa, diante de sua mulher que tem o filho no colo. Foi até ela para pedir que fuja.

            Então, é o grito feminino que sela o destino do fracasso, da perda das terras, da identidade diluída. Aterrorizada, ela murmura: “Para onde iremos? para onde?”.

Um grito sufocado que no Continente ainda não mereceu resposta.

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