A estranheza diante dos índios, demonstrada pelos
ibéricos quando aqui chegaram, jamais deixou de existir nestes quinhentos anos
de conquista, como tampouco, jamais deixou de se manifestar, em qualquer
momento ou situação, em todo o território do Continente. Para os latino-americanos brancos e mestiços, o índio é tão esquisito
quanto um armênio, ainda pôde dizer
a pesquisadora inglesa Jean Franco, em 1975, na sua consagrada Historia
de la literatura hispanoamericana. Assim, na tentativa de entendê-lo
ou explicá-lo, pois sempre continuou sendo considerado pelos conquistadores um
elemento marginal, a Literatura , ao almejar o mimetismo realista, o elegeu
personagem e tema. Durante decênios o índio foi, então, presença constante na
ficção do Continente.
Em
1919, foi publicado Raza de bronce do boliviano Alcides Árguedas. Uma
obra que se enquadra no considerado típico romance indianista em que as
relações entre os brutos e cruéis donos da terra e seus capatazes com os
índios, despojados de suas terras e de todos os seus valores, direcionam o
fazer ficcional.
Elogiada
pelas descrições da natureza e pelas descrições dos costumes indígenas, o
idílio entre Agiali e Wata-Wara que justifica
ser a obra considerada um romance
é tão somente um breve motivo.
Belos,
jovens e unidos por um amor sem obstáculos, Agiali e Wata-Wara, como todos
aqueles fadados para a felicidade, não teriam história. Mas, por serem índios,
sobrevém-lhes, da vontade imperiosa dos brancos, a tragédia. Cinco rápidas
seqüências narrativas que mal preenchem doze páginas das duzentas e quarenta e
seis que constituem o romance, na edição da Losada (1946), são a eles dedicadas.
As demais, narram e descrevem a vida dos índios e o seu relacionamento com os brancos.
A
primeira parte é dedicada à longa viagem que deve efetuar Agiali, em companhia
de outros índios, para comprar grão. Partem, a mando do patrão, levando seus próprios
animais num itinerário em que, quase sempre, arriscam a vida. Em terras inóspitas, perigosamente
desconhecidas para eles, tudo acaba por lhes ser hostil: os estreitos caminhos
da cordilheira, as mudanças climáticas, o trato com os habitantes do vale. Voltam sem um dos companheiros, morto pela
fúria da torrente; com um outro, condenado à febre da malária; voltam com os
animais feridos pelo excesso de carga e pelo mau estado dos caminhos.
Na
segunda parte é narrado o injusto cotidiano dos índios e seus costumes: uma
cerimônia de casamento, um enterro, a bênção dos peixes no lago Titicaca.
O
olhar não degradado do escritor percebe e condena a crueldade que se origina
das relações estabelecidas pelos conquistadores .E o maniqueísmo na criação dos
personagens – os brancos, maus e prepotentes; os índios hipócritas e
subservientes – deixa claro a origem européia do escritor que deseja defender
os indígenas sem poder, todavia, compreendê-los plenamente.Não escamoteia os
crimes cometidos pelos brancos mas não pode se impedir de condenar aquilo que
não pertence a seu imaginário. E, certamente, insere na ficção um propósito
didático que transparece nas palavras de dois de seus personagens: Suárez e
Pantoja.
Suárez,
um visitante vindo da cidade, define o índio como um homem igual aos outros,
porém mais rústico, ignorante, humilde
como um cão, mais miserável que o mujique russo, trabalhador, laborioso,
econômico. Pantojo, o dono das
terras, retruca: os índios são hipócritas,
ladrões por instinto, mentirosos, cureis
e vingativos. Maneira de ser que Suárez insiste, ainda, em justificar,
argumentando que há quatrocentos anos, o
branco não faz outra coisa que viver do índio, explorando-o, roubando-o,
esgotando em benefício próprio seu
sangue e seu suor. Sem dúvida, são
palavras de uma voz solitária, “alter ego” do autor a sugerir a justiça e a
igualdade.
Vinte
anos depois da primeira edição, Alcides
Árguedas, ao publicar, novamente, Raza de bronce, lhe acrescenta
uma nota: Este livro, em mais de vinte
anos, deve ter trabalhado lentamente na consciência nacional porque desde
aquela época até hoje, e, sobretudo, nestes últimos tempos ,muito tem sido o
afã dos poderes públicos para ditar leis protetoras do índio, assim como,
muitos foram os proprietários que introduziram máquinas agrícolas para o
trabalho do campo, abolindo a prestação gratuita de certos serviços e
construindo escolas nas suas terras. Um congresso indígena acontecido em maio
deste ano de 1945 e referendado pelo Governo adotou resoluções de tal natureza
que o pária de ontem está a caminho de se converter no senhor de amanhã...Os
quadros e as cenas aqui descritos, tirados todos da verídica realidade de
ontem, dificilmente poderiam se reproduzir hoje em dia, salvo em detalhes de
pequena importância. E é justo dize-lo”.
Fôra, no seu
entender, concedida ao índio a justiça.

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