domingo, 4 de agosto de 1991

O romance indianista:Raza de bronce


            A estranheza diante dos índios, demonstrada pelos ibéricos quando aqui chegaram, jamais deixou de existir nestes quinhentos anos de conquista, como tampouco, jamais deixou de se manifestar, em qualquer momento ou situação, em todo o território do Continente. Para os latino-americanos brancos e mestiços, o índio é tão esquisito quanto um armênio, ainda pôde dizer  a pesquisadora inglesa Jean Franco, em 1975, na sua consagrada Historia de la literatura hispanoamericana. Assim, na tentativa de entendê-lo ou explicá-lo, pois sempre continuou sendo considerado pelos conquistadores um elemento marginal, a Literatura , ao almejar o mimetismo realista, o elegeu personagem e tema. Durante decênios o índio foi, então, presença constante na ficção do Continente.

            Em 1919, foi publicado Raza de bronce do boliviano Alcides Árguedas. Uma obra que se enquadra no considerado típico romance indianista em que as relações entre os brutos e cruéis donos da terra e seus capatazes com os índios, despojados de suas terras e de todos os seus valores, direcionam o fazer ficcional.

            Elogiada pelas descrições da natureza e pelas descrições dos costumes indígenas, o idílio entre Agiali e Wata-Wara que justifica  ser a obra  considerada um romance é tão somente um breve motivo.

            Belos, jovens e unidos por um amor sem obstáculos, Agiali e Wata-Wara, como todos aqueles fadados para a felicidade, não teriam história. Mas, por serem índios, sobrevém-lhes, da vontade imperiosa dos brancos, a tragédia. Cinco rápidas seqüências narrativas que mal preenchem doze páginas das duzentas e quarenta e seis que constituem o romance, na edição da Losada (1946), são a eles dedicadas. As demais, narram e descrevem a vida dos índios e o seu relacionamento  com os brancos.

            A primeira parte é dedicada à longa viagem que deve efetuar Agiali, em companhia de outros índios, para comprar grão. Partem, a mando do patrão, levando seus próprios animais num itinerário em que, quase sempre, arriscam a vida.          Em terras inóspitas, perigosamente desconhecidas para eles, tudo acaba por lhes ser hostil: os estreitos caminhos da cordilheira, as mudanças climáticas, o trato com os habitantes do vale.      Voltam sem um dos companheiros, morto pela fúria da torrente; com um outro, condenado à febre da malária; voltam com os animais feridos pelo excesso de carga e pelo mau estado dos caminhos.

            Na segunda parte é narrado o injusto cotidiano dos índios e seus costumes: uma cerimônia de casamento, um enterro, a bênção dos peixes no lago Titicaca.

            O olhar não degradado do escritor percebe e condena a crueldade que se origina das relações estabelecidas pelos conquistadores .E o maniqueísmo na criação dos personagens – os brancos, maus e prepotentes; os índios hipócritas e subservientes – deixa claro a origem européia do escritor que deseja defender os indígenas sem poder, todavia, compreendê-los plenamente.Não escamoteia os crimes cometidos pelos brancos mas não pode se impedir de condenar aquilo que não pertence a seu imaginário. E, certamente, insere na ficção um propósito didático que transparece nas palavras de dois de seus personagens: Suárez e Pantoja.

            Suárez, um visitante vindo da cidade, define o índio como um homem igual aos outros, porém mais rústico, ignorante, humilde como um cão, mais miserável que o mujique russo, trabalhador, laborioso, econômico.  Pantojo, o dono das terras, retruca: os índios são hipócritas, ladrões por instinto, mentirosos, cureis e vingativos. Maneira de ser que Suárez insiste, ainda, em justificar, argumentando que há quatrocentos anos, o branco não faz outra coisa que viver do índio, explorando-o, roubando-o, esgotando em benefício próprio seu sangue e seu suor.  Sem dúvida, são palavras de uma voz solitária, “alter ego” do autor a sugerir a justiça e a igualdade.

            Vinte anos depois da primeira  edição, Alcides Árguedas, ao publicar, novamente, Raza de bronce, lhe acrescenta uma nota: Este livro, em mais de vinte anos, deve ter trabalhado lentamente na consciência nacional porque desde aquela época até hoje, e, sobretudo, nestes últimos tempos ,muito tem sido o afã dos poderes públicos para ditar leis protetoras do índio, assim como, muitos foram os proprietários que introduziram máquinas agrícolas para o trabalho do campo, abolindo a prestação gratuita de certos serviços e construindo escolas nas suas terras. Um congresso indígena acontecido em maio deste ano de 1945 e referendado pelo Governo adotou resoluções de tal natureza que o pária de ontem está a caminho de se converter no senhor de amanhã...Os quadros e as cenas aqui descritos, tirados todos da verídica realidade de ontem, dificilmente poderiam se reproduzir hoje em dia, salvo em detalhes de pequena importância. E é justo dize-lo”.

Fôra, no seu entender, concedida ao índio a justiça.

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