domingo, 11 de agosto de 1991

O romance indianista:Huasipungo


            Huasipungo, em quíchua, quer dizer parcela de terra, cedida pelo latifundiário ao índio em troca de parte de seu trabalho diário. Um acerto que envolve a  crueldade e a indiferença  do proprietário da terra, de onde  advém os maus tratos e suas respectivas e insensatas justificativas e a submissão e a fome dos índios, em sofrimentos que chegam ao limite do suportável, origem de eventuais e alucinantes revoltas. Durante anos regeu as relações entre brancos e índios da região andina e, sempre, extrapolou  direitos, permitindo ao proprietário usar do índio como se fosse um animal.

            É o que faz Alfonso Pereira. Obrigado por razões familiares ( a desonra da filha que deve permanecer secreta) e financeiras  (a necessidade de obter o maior lucro possível para saldar dívidas prementes), deve abandonar Quito e partir para suas propriedades nas montanhas.

            Para executar os projetos que ali o levaram – a construção de uma estrada  para que determinada firma estrangeira possa exportar matéria prima, a extração da madeira e, finalmente, a expulsão dos índios dos huasipungos – obtém o apoio do pároco e do chefe político do lugarejo. O primeiro atrai os índios para a missa festiva com música e bênção e promessas de indulgências: Oh! Sim! Cem, mil dias de indulgências por avanço por metro da obra. O segundo, induzindo ao trabalho coletivo cujo resultado, no seu dizer, será o progresso da comunidade.

            Quando voltam, após semanas de ausência de suas terras, construindo uma estrada que só dará lucro ao patrão e lhe pedem o que lhes é devido, são ameaçados de chicote e perseguidos pelos cães.

            Suportam a fome, o frio, as chicotadas, as injúrias. Impossível, no entanto, para eles,  perder seu pedaço de terra, sua pobre casa, seu minúsculo cultivo. Então, tentam lutar.   Para dominar  essa luta chegam os soldados de Quito e cumprem o seu dever patriótico sem saber discernir qual é a pátria que defendem:   Ao amanhecer, entre as choças desfeitas, entre os escombros, entre as cinzas, entre os cadáveres, ainda mornos, surgiram, como nos sonhos, centenas  de braços delgados como espigas de cevada que ao  se  deixar acariciar pelos ventos gelados dos desertos da América murmuravam com sua voz ululante: Nucanchic huasipungo! Nucanchic huasipungo!:  A terra é nossa. A última palavra do romance  e é a mesma que lhe dá o título, Huasipungo. Encerrados nesses limites ficcionais, personagens protótipos de uma sociedade de classe cujas relações são regidas pelo racismo e pela cupidez, gênese da obediência e do despojamento dos índios.    O proprietário, o chefe político, o pároco versus o índio. O que possui, o que defende a propriedade alheia, o que prega normas definitivas. Um todo que se alimenta das privações e da destruição do mais fraco.

            Publicado  em 1934, primeiro romance do equatoriano Jorge Icaza, Huasipungo individualiza destinos coletivos. Alfonso Pereira é o rico, é o que se submete ao jogo comandado pelo estrangeiro. André Chiliquinga é uma das suas vítimas. Porque é índio e porque vive nas suas terras. Para não perder esse tão pequeno privilégio é obrigado a aceitar um trabalho que o afasta muitos quilômetros de sua casa. Mas ele não pode conceber a vida longe da mulher, do filho pequeno, de suas coisas, de seu cão. Depois de um duro dia de trabalho, ele escapa para ficar uns momentos junto deles. Chega, exausto, e encontra a choça vazia, o cão triste. Fica sem saber que a mulher fora alimentar com o seu leite o neto do patrão e, também submeter-se a seus outros caprichos.

            Privado do elementar direito de dormir sob o seu próprio teto, de viver junto de sua família e sem humilhações, André Chiquilinga reage. É privado, também, da vida.

            Perene tragédia que acompanha a chegada dos brancos no Continente.

            Jorge Icaza a denuncia, preso a um realismo que não elude as imagens mais sombrias e cruéis. Sórdidas, repugnantes, dizem, por vezes, os críticos. Como se a imagem da degradação – alcoolismo, sujeira, doença, podridão – possa ser mais repugnante e sórdida do que essas leis que permitem e justificam os crimes perpetuados em nome de verdades.

            Na sua imundície, ignorância e misérias, os ficcionais índios de Jorge Icaza espelham, ainda, a maioria dos homens do Continente.

 

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