Huasipungo,
em quíchua, quer dizer parcela de terra, cedida pelo latifundiário ao índio em
troca de parte de seu trabalho diário. Um acerto que envolve a crueldade e a indiferença do proprietário da terra, de onde advém os maus tratos e suas respectivas e
insensatas justificativas e a submissão e a fome dos índios, em sofrimentos que
chegam ao limite do suportável, origem de eventuais e alucinantes revoltas.
Durante anos regeu as relações entre brancos e índios da região andina e,
sempre, extrapolou direitos, permitindo
ao proprietário usar do índio como se fosse um animal.
É
o que faz Alfonso Pereira. Obrigado por razões familiares ( a desonra da filha
que deve permanecer secreta) e financeiras
(a necessidade de obter o maior lucro possível para saldar dívidas
prementes), deve abandonar Quito e partir para suas propriedades nas montanhas.
Para
executar os projetos que ali o levaram – a construção de uma estrada para que determinada firma estrangeira possa
exportar matéria prima, a extração da madeira e, finalmente, a expulsão dos
índios dos huasipungos – obtém o apoio do pároco e do chefe político do
lugarejo. O primeiro atrai os índios para a missa festiva com música e bênção e
promessas de indulgências: Oh! Sim! Cem, mil dias de indulgências por
avanço por metro da obra. O segundo, induzindo ao trabalho coletivo cujo
resultado, no seu dizer, será o progresso da comunidade.
Quando
voltam, após semanas de ausência de suas terras, construindo uma estrada que só
dará lucro ao patrão e lhe pedem o que lhes é devido, são ameaçados de chicote
e perseguidos pelos cães.
Suportam
a fome, o frio, as chicotadas, as injúrias. Impossível, no entanto, para
eles, perder seu pedaço de terra, sua
pobre casa, seu minúsculo cultivo. Então, tentam lutar. Para dominar essa luta
chegam os soldados de Quito e cumprem o seu dever patriótico sem saber discernir
qual é a pátria que defendem: Ao
amanhecer, entre as choças desfeitas, entre os escombros, entre as cinzas,
entre os cadáveres, ainda mornos, surgiram, como nos sonhos, centenas de braços delgados como espigas de cevada que
ao se
deixar acariciar pelos ventos gelados dos desertos da América murmuravam
com sua voz ululante: Nucanchic huasipungo! Nucanchic huasipungo!: A terra é nossa. A última palavra do
romance e é a mesma que lhe dá o título,
Huasipungo. Encerrados nesses limites ficcionais, personagens protótipos
de uma sociedade de classe cujas relações são regidas pelo racismo e pela
cupidez, gênese da obediência e do despojamento dos índios. O proprietário, o chefe político, o pároco
versus o índio. O que possui, o que defende a propriedade alheia, o que prega
normas definitivas. Um todo que se alimenta das privações e da destruição do
mais fraco.
Publicado em 1934, primeiro romance do equatoriano
Jorge Icaza, Huasipungo individualiza destinos coletivos. Alfonso
Pereira é o rico, é o que se submete ao jogo comandado pelo estrangeiro. André
Chiliquinga é uma das suas vítimas. Porque é índio e porque vive nas suas
terras. Para não perder esse tão pequeno privilégio é obrigado a aceitar um
trabalho que o afasta muitos quilômetros de sua casa. Mas ele não pode conceber
a vida longe da mulher, do filho pequeno, de suas coisas, de seu cão. Depois de
um duro dia de trabalho, ele escapa para ficar uns momentos junto deles. Chega,
exausto, e encontra a choça vazia, o cão triste. Fica sem saber que a mulher
fora alimentar com o seu leite o neto do patrão e, também submeter-se a seus
outros caprichos.
Privado
do elementar direito de dormir sob o seu próprio teto, de viver junto de sua
família e sem humilhações, André Chiquilinga reage. É privado, também, da vida.
Perene
tragédia que acompanha a chegada dos brancos no Continente.
Jorge
Icaza a denuncia, preso a um realismo que não elude as imagens mais sombrias e
cruéis. Sórdidas, repugnantes, dizem, por vezes, os críticos. Como se a imagem
da degradação – alcoolismo, sujeira, doença, podridão – possa ser mais
repugnante e sórdida do que essas leis que permitem e justificam os crimes
perpetuados em nome de verdades.
Na
sua imundície, ignorância e misérias, os ficcionais índios de Jorge Icaza
espelham, ainda, a maioria dos homens do Continente.
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