domingo, 29 de julho de 1990

Sobre Resistencias


            No Chaco argentino existe uma cidade chamada Resistência. Está situada na planície, na terra vermelha: suas ruas, arborizadas e muito largas, tem amplos canteiros que um dia receberam, também, uma função hedonística. Neles, pousam, hoje, peças de pedra e madeira e concreto e bronze que os artistas argentinos modelaram e mecenas pagaram para ostentar, na frente de suas casas, o belo, e eventualmente, o testemunho da riqueza.

            Foi Aldo Boglietti quem idealizou esse museu  sem portas. Um ano antes, ele havia dado vida a uma velha casa da rua Brown que foi se tornando ateliê de artistas, um espaço para reuniões informais, para encontro de amigos. Das tertúlias que então promoveram, dos encontros e amizades, do gosto pelas coisas e da capacidade de nelas ver muitos significados, surgiu “El fogón de los arrieros”, sua residência e receptáculo de livros, fotos, discos, um teatro de marionetes, armas antigas, tecidos, um  piano, terracotas de Victor Marchese, flechas, cuias, cachimbos, artesanato indígena e uma infinidades de objetos os mais díspares que representam um valor artístico ou um rasgo de humor, numa dualidade significativa. Entre muitas outras coisas, a hesitação que às vezes pode tocar – e hoje cada vez mais freqüente e profundamente – o intelectual, o artista latino-americano que se debate entre as suas ( não) raízes e a influência colonizadora que por superposição lhe moldou os gostos.

            A presença, numa das paredes da casa-museu, entre outras, igualmente emolduradas, de uma carta de Jean Paul Sartre é a prova cabal desse dualismo. Vem datada de Paris, num 18 de novembro de 1949, reposta a alguém de “El fogón de los arrieros” que pede permissão para representar as suas peças. Em papel timbrado de Les temps modernes , escritas à máquina, as palavras: Senhorita. Agradeço-lhe a amável  e longa carta e o interesse que demonstra, assim como seus amigos do “Fogón de los arrieros” pelas minhas peças. Dou, com prazer, a minha autorização para que representem qualquer de minhas peças na sua cidade de tão belo nome de Resistência. Desejo a todos muito sucesso e lhe envio minhas melhores amizades. Jean Paul Sartre.

            Nada mais formalmente cordiais do que essas palavras. Ao subscrevê-las, Sartre tinha quarenta e quatro anos, importante obra  publicada, seu teatro se constituía de Les mouches, Morts sans sepulture, Les mains sales e dirigia Les temps modernes. Para ele se voltam os olhos dos intelectuais e beletristas que no, “El fogón de los arrieros”, querem fazer teatro.

            Quatro anos se tinham passado desde o término da Segunda Guerra Mundial. Ex-prisioneiro dos alemães, certamente, para Sartre, a palavra “resistência” não poderia deixar de ter a conotação precisa, pejada de atos heróicos, de vidas oferecidas a uma liberdade que fora ceifada pelas ideologias norteadoras do conflito mundial de  1939-1945. O significado que ainda conserva nos dias de hoje para os europeus que viveram a guerra e para aqueles que tentam preservar a  lembrança dos que se opuseram à opressão e optaram pela difícil luta subterrânea contra as ideologias extremistas.

            Sartre, sem dúvida, ignorou sempre que “o tão belo nome de resistência” se originou de atos colonizadores: um ato governamental ao nomear a Comissão Exploradora com o objetivo                     específico de escolher um lugar para fundar uma povoação e da luta de um grupo de colonizadores contra os índios ao se instalarem próximo ao local onde existira a redução de São Fernando. Foi essa luta bravia pela posse da terra chamada de “resistência”.  Os brancos resistindo aos índios que lutavam pela sua terra invadida e em louvor dessa luta, denominado Resistência o novo núcleo urbano que nascia.

            Certamente, Sartre ignorou  também que ao redor da cidade em que reviviam (terão revivido)  suas palavras ditas pelos atores que representavam suas peças, existia uma outra resistência: a dos povos espoliados. A resistência vencida. Aquela que os aculturados esquecem. Cujo final trágico as cifras – embora sem possibilitar a reconstrução do massacre, a evidência da extinção de um povo, a descrição dantesca do detalhe, do sacrifício  de inocentes que eram os donos da terra -  friamente comprovam.
 

            Dessas resistências passivas da América entregue, da América esvaída estariam conscientes os repetidores das palavras de Sartre?  Na verdade, nesta América de fabulosas ditaduras, grandiosas matanças, formidáveis torturas, longuíssimas prisões, exílios eterno, mortes prematuras, irreversíveis ignorâncias, carências atávicas, fomes demolidoras, muitos anos passaram. Mas, para que o advento de um novo olhar sobre a vida e sobre a morte no Continente americano enfim surgisse, foram necessários  esse tempo transcorridos, os muitos livros, as muitas mutações.

            Resistências novas, latentes m indivíduos ou germinado em grupo, então se delineiam: possíveis ou impossíveis, violentas ou pacificamente bem intencionadas, expressas pela palavra ou pelo silêncio. Resistência que não defendem apenas e primitivamente o território geográfico infestado mas, talvez, antes de mais nada o direito de se opor à ocupação qualquer que seja ela. Isto é, um processo de amadurecimento de exasperante morosidade cujos resultados, como redenção de uma maioria sufocada, são esperados, desejados, procurados por aqueles que a custo de muito esforço estão tentando ou conseguiram se descolonizar.

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