No
Chaco argentino existe uma cidade chamada Resistência. Está situada na
planície, na terra vermelha: suas ruas, arborizadas e muito largas, tem amplos
canteiros que um dia receberam, também, uma função hedonística. Neles, pousam,
hoje, peças de pedra e madeira e concreto e bronze que os artistas argentinos
modelaram e mecenas pagaram para ostentar, na frente de suas casas, o belo, e
eventualmente, o testemunho da riqueza.
Foi
Aldo Boglietti quem idealizou esse museu
sem portas. Um ano antes, ele havia dado vida a uma velha casa da rua
Brown que foi se tornando ateliê de artistas, um espaço para reuniões
informais, para encontro de amigos. Das tertúlias que então promoveram, dos
encontros e amizades, do gosto pelas coisas e da capacidade de nelas ver muitos
significados, surgiu “El fogón de los arrieros”, sua residência e receptáculo
de livros, fotos, discos, um teatro de marionetes, armas antigas, tecidos,
um piano, terracotas de Victor Marchese,
flechas, cuias, cachimbos, artesanato indígena e uma infinidades de objetos os
mais díspares que representam um valor artístico ou um rasgo de humor, numa
dualidade significativa. Entre muitas outras coisas, a hesitação que às vezes
pode tocar – e hoje cada vez mais freqüente e profundamente – o intelectual, o
artista latino-americano que se debate entre as suas ( não) raízes e a
influência colonizadora que por superposição lhe moldou os gostos.
A
presença, numa das paredes da casa-museu, entre outras, igualmente emolduradas,
de uma carta de Jean Paul Sartre é a prova cabal desse dualismo. Vem datada de
Paris, num 18 de novembro de 1949, reposta a alguém de “El fogón de los
arrieros” que pede permissão para representar as suas peças. Em papel timbrado
de Les temps modernes , escritas à máquina, as palavras: Senhorita. Agradeço-lhe a amável e longa carta e o interesse que demonstra,
assim como seus amigos do “Fogón de los arrieros” pelas minhas peças. Dou, com
prazer, a minha autorização para que representem qualquer de minhas peças na
sua cidade de tão belo nome de Resistência. Desejo a todos muito sucesso e lhe
envio minhas melhores amizades. Jean Paul Sartre.
Nada
mais formalmente cordiais do que essas palavras. Ao subscrevê-las, Sartre tinha
quarenta e quatro anos, importante obra publicada, seu teatro se constituía de Les
mouches, Morts sans sepulture, Les mains sales e dirigia Les
temps modernes. Para ele se voltam os olhos dos intelectuais e beletristas
que no, “El fogón de los arrieros”, querem fazer teatro.
Quatro
anos se tinham passado desde o término da Segunda Guerra Mundial.
Ex-prisioneiro dos alemães, certamente, para Sartre, a palavra “resistência”
não poderia deixar de ter a conotação precisa, pejada de atos heróicos, de
vidas oferecidas a uma liberdade que fora ceifada pelas ideologias norteadoras
do conflito mundial de 1939-1945. O
significado que ainda conserva nos dias de hoje para os europeus que viveram a
guerra e para aqueles que tentam preservar a
lembrança dos que se opuseram à opressão e optaram pela difícil luta
subterrânea contra as ideologias extremistas.
Sartre,
sem dúvida, ignorou sempre que “o tão belo nome de resistência” se originou de
atos colonizadores: um ato governamental ao nomear a Comissão Exploradora com o
objetivo específico
de escolher um lugar para fundar uma povoação e da luta de um grupo de
colonizadores contra os índios ao se instalarem próximo ao local onde existira
a redução de São Fernando. Foi essa luta bravia pela posse da terra chamada de “resistência”. Os brancos resistindo aos índios que lutavam
pela sua terra invadida e em louvor dessa luta, denominado Resistência o novo
núcleo urbano que nascia.
Certamente,
Sartre ignorou também que ao redor da
cidade em que reviviam (terão revivido)
suas palavras ditas pelos atores que representavam suas peças, existia
uma outra resistência: a dos povos espoliados. A resistência vencida. Aquela
que os aculturados esquecem. Cujo final trágico as cifras – embora sem
possibilitar a reconstrução do massacre, a evidência da extinção de um povo, a
descrição dantesca do detalhe, do sacrifício
de inocentes que eram os donos da terra - friamente comprovam.
Dessas
resistências passivas da América entregue, da América esvaída estariam
conscientes os repetidores das palavras de Sartre? Na verdade, nesta América de fabulosas
ditaduras, grandiosas matanças, formidáveis torturas, longuíssimas prisões,
exílios eterno, mortes prematuras, irreversíveis ignorâncias, carências
atávicas, fomes demolidoras, muitos anos passaram. Mas, para que o advento de
um novo olhar sobre a vida e sobre a morte no Continente americano enfim
surgisse, foram necessários esse tempo
transcorridos, os muitos livros, as muitas mutações.
Resistências
novas, latentes m indivíduos ou germinado em grupo, então se delineiam:
possíveis ou impossíveis, violentas ou pacificamente bem intencionadas,
expressas pela palavra ou pelo silêncio. Resistência que não defendem apenas e
primitivamente o território geográfico infestado mas, talvez, antes de mais
nada o direito de se opor à ocupação qualquer que seja ela. Isto é, um processo
de amadurecimento de exasperante morosidade cujos resultados, como redenção de
uma maioria sufocada, são esperados, desejados, procurados por aqueles que a
custo de muito esforço estão tentando ou conseguiram se descolonizar.

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