domingo, 15 de julho de 1990

Causos de fronteiras



            O estudo da Literatura Gauchesca como expressão regional de três países, ignorando as fronteiras políticas impostas, se constitui uma proposta de estudo da Literatura a partir de fronteiras geográficas.

            O Uruguai, o sul do Rio Grande do Sul e as planícies argentinas que fazem fronteiras são um exemplo de região geográfica cujos habitantes e cujos costumes possuem denominadores comuns. No domínio da narrativa, o contador de causo – um relato fantástico, exagerado – criado para o entretenimento numa roda de chimarrão.

            De um mesmo espaço geográfico, separado pelas linhas demarcatórias oficiais, dois narradores: Simão Lopes Neto, gaúcho de Pelotas e José Maria Obaldía, uruguaio de Treinta y Trés. Na criação literária dos causos de galpão, eles contam três causos iguais. Um deles, o da cobra enregelada.

            Num inverno muito frio e ao buscar um espeto para o churrasco, o gaúcho encontra um, excelente. Nele espeta a carne e a coloca no fogo. E, eis que, de repente, carne e espeto saem deslizando campo afora. Alguém percebe, chama a atenção para o estranho fato e constata-se que o “espeto”era uma cobra. Enregelado pelo frio, ao calor do fogo ela se reanimara e fugira para o seu ninho.

            Em Língua Portuguesa, o causo foi recolhido por Simões Lopes Neto. Aconteceu a Romualdo quando ele era cadete e a tropa, em meio à marcha forçada, fez alta para um churrasco. Cada soldado devia assar o seu pedaço de carne e Romualdo logo achou o espeto ideal, duma meia braça, grossinho, liso e o que é mais, já com a  ponta feita. A carne no fogo, a prosa animada e de súbito o alerta de que o assado ia-se embora, “fugindo da fogueira”.

            Publicado em folhetim ( o primeiro, no dia 1 de junho de 1914) no Correio Mercantil de Pelotas, este causo é um dos que fazem parte dos Causos do Romualdo, livro que tantas vezes a Editora Globo ( a velha Editora Globo) publicou.

            No livro de José María Obaldía, 20 mentiras de verdad ( publicado em Montevidéu, em 1971), a história é contada por Don Brígido, uma, entre as que vai desnovelando na roda do chimarrão. Falava-se de invernos muito duros. Don Brígido lembra daquele que foi o mais frio de sua vida: O campo tinha amanhecido branqueando como um lençol.... Ele  andava tropeando e foi encarregado de assar a carne. Procurando um galho para fazer o espeto, achou um retinho e  ponteagudo. Colocada a carne na espeto, perto das brasas, foi tratar do mate quando o capataz lhe grita que o assado estava disparando. O caso foi que o pau retinho e pontiagudo que eu tinha escolhido para espeto era uma bruta cobra enregelada pelo frio. Quando sentiu o calorzinho das brasas, reviveu de repente e saiu disparando rumo à cova.

            Simões Lopes Neto, apaixonado pelas tradições de sua terra, folclorista de  galpão, como o chamou Augusto Meyer, deu voz ao Romualdo que existiu de verdade e muitas histórias contou. Ou, deu vida àquelas vozes antigas que se perpetuam no anônimo.

            José María Obaldía, dominado pela necessidade de recriar o mundo de sua infância, dele extrai os relatos que Don Brígido irá contar. No Prólogo de 20 mentiras de verdad, Julio D. da Rosa o considera um precursor neste resgate da mentira criola. E, precursor também foi Simões Lopes Neto ao coligir, pacientemente, as mentiras de Romualdo.

            Cada um no seu desejo de fixar a criatividade do homem do campo. Um homem que foi separado por fronteiras, por interesses, por idiomas. E que, no entanto, lá ficou, na sua visão de mundo, enraizado, comprometido com o seu espaço.

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