O
estudo da Literatura Gauchesca como expressão regional de três países,
ignorando as fronteiras políticas impostas, se constitui uma proposta de estudo
da Literatura a partir de fronteiras geográficas.
O
Uruguai, o sul do Rio Grande do Sul e as planícies argentinas que fazem
fronteiras são um exemplo de região geográfica cujos habitantes e cujos
costumes possuem denominadores comuns. No domínio da narrativa, o contador de
causo – um relato fantástico, exagerado – criado para o entretenimento numa
roda de chimarrão.
De
um mesmo espaço geográfico, separado pelas linhas demarcatórias oficiais, dois
narradores: Simão Lopes Neto, gaúcho de Pelotas e José Maria Obaldía, uruguaio
de Treinta y Trés. Na criação literária dos causos de galpão, eles contam três
causos iguais. Um deles, o da cobra enregelada.
Num
inverno muito frio e ao buscar um espeto para o churrasco, o gaúcho encontra
um, excelente. Nele espeta a carne e a coloca no fogo. E, eis que, de repente,
carne e espeto saem deslizando campo afora. Alguém percebe, chama a atenção
para o estranho fato e constata-se que o “espeto”era uma cobra. Enregelado pelo
frio, ao calor do fogo ela se reanimara e fugira para o seu ninho.
Em
Língua Portuguesa, o causo foi recolhido por Simões Lopes Neto. Aconteceu a
Romualdo quando ele era cadete e a tropa, em meio à marcha forçada, fez alta
para um churrasco. Cada soldado devia assar o seu pedaço de carne e Romualdo
logo achou o espeto ideal, duma meia braça, grossinho, liso e o que é mais, já
com a ponta feita. A carne no fogo,
a prosa animada e de súbito o alerta de que o assado ia-se embora, “fugindo da
fogueira”.
Publicado
em folhetim ( o primeiro, no dia 1 de junho de 1914) no Correio Mercantil
de Pelotas, este causo é um dos que fazem parte dos Causos do Romualdo,
livro que tantas vezes a Editora Globo ( a velha Editora Globo) publicou.
No
livro de José María Obaldía, 20 mentiras de verdad ( publicado em
Montevidéu, em 1971), a história é contada por Don Brígido, uma, entre as que
vai desnovelando na roda do chimarrão. Falava-se de invernos muito duros. Don
Brígido lembra daquele que foi o mais frio de sua vida: O campo tinha amanhecido
branqueando como um lençol.... Ele
andava tropeando e foi encarregado de assar a carne. Procurando um galho
para fazer o espeto, achou um retinho e
ponteagudo. Colocada a carne na espeto, perto das brasas, foi tratar do
mate quando o capataz lhe grita que o assado estava disparando. O caso foi que o pau retinho e pontiagudo
que eu tinha escolhido para espeto era uma bruta cobra enregelada pelo frio.
Quando sentiu o calorzinho das brasas, reviveu de repente e saiu disparando
rumo à cova.
Simões
Lopes Neto, apaixonado pelas tradições de sua terra, folclorista de galpão, como o chamou Augusto Meyer, deu voz
ao Romualdo que existiu de verdade e muitas histórias contou. Ou, deu vida
àquelas vozes antigas que se perpetuam no anônimo.
José
María Obaldía, dominado pela necessidade de recriar o mundo de sua infância,
dele extrai os relatos que Don Brígido irá contar. No Prólogo de 20 mentiras
de verdad, Julio D. da Rosa o considera um precursor neste resgate da mentira criola. E, precursor também foi
Simões Lopes Neto ao coligir, pacientemente, as mentiras de Romualdo.
Cada
um no seu desejo de fixar a criatividade do homem do campo. Um homem que foi
separado por fronteiras, por interesses, por idiomas. E que, no entanto, lá
ficou, na sua visão de mundo, enraizado, comprometido com o seu espaço.

Nenhum comentário:
Postar um comentário