domingo, 5 de agosto de 1990

E houve, uma vez, um rei


            Foi no Haiti que, no século XVII, irrompeu a grande insurreição negra. A Ilha alcançava um alto grau de riqueza. As terras cultivadas pertenciam aos brancos e eram eles que usufruíam de seus frutos. Os negros trabalhavam. De tantos anos de jugo, de humilhações e torturas, o resultado foi  uma revolta que se voltou contra aqueles que impunham  uma vida colmada de penúrias e foi além. Destruíu as plantações e com elas, toda a riqueza. Os chefes da revolta se sucederam – Toussaint L’Ouverture, Jean Jacques Dessaline, Pétion e Christophe que se proclamou rei com o título de Henri I.  Era negro mas seus olhos se voltaram para o mudo dos brancos com tudo o que isso poderia representar de ignomínia em relação a seu povo. Assim, quando na França, a Revolução Francesa já havia efetuado mudanças, concedendo direitos às massas até então exploradas, Cristophe construiu um cenário monárquico repetindo nele os requintes e as mazelas das cortes européias.

            Ti Noel, o personagem de El reino de este mundo ( 1949), de Alejo Carpentier, volta de Cuba para seu país onde, diziam,  reinava a justiça depois de tantas injustiças. Caminhava ao acaso quando chegou ao palácio do Rei. Antes, havia visto negros, trabalhando sob o látego de outros negros. No palácio e seus jardins onde se erigiam terraços, pérgolas, estátuas, leões de bronze e onde corriam riachos artificiais, grande foi sua admiração ao constatar que todos os que aí se moviam eram negros: militares vestidos de branco, ministros de meias brancas, o cozinheiro com arminho no boné, o copeiro com correntes de prata, os atores, os lacaios, os músicos, as mulheres coroadas de plumas e seguindo a moda Império que lhes levantava o busto.

            Não havia, ainda, entendido bem o que estava vendo quando foi preso. Mais tarde, depois de nova escravidão, quando outra vez a revolta dos negros procurou justiça, Ti Noel pode possuir objetos daquele mundo feérico. O palácio foi saqueado e relógios, cadeiras, baldaquins, divans, lâmpadas, bacias passaram a ser propriedade daqueles homens e mulheres e crianças que até então mal possuíam o que vestir e o que comer. Ti Noel passou a ser dono do que pilhara: um  peixe embalsamado, presente da Real Sociedade Científica de Londres a Victor,  filho de Christophe, uma caixa de bombons de vidro verde e espesso, uma boneca vestida de pastora e três tomos da Grande Enciclopédia. Neles, Ti Noel se sentava para comer pedaços de cana de açúcar, ignorando usos e serventias de coisas que, certamente, pouco tinham que ver com a sua terra e com o seu povo.

            Na verdade, tampouco tinham que ver com a família do Rei. Ao fugir da invasão do Palácio, a Rainha, ainda usando sapatos de salto alto à moda francesa, torcera o pé. No dia anterior, diante da doença do Rei, ignorara a etiqueta real para se agachar na própria alcova onde ele repousava e vigiar a fervura de um cozimento de raízes posto para esquentar sobre um braseiro de carvão a lenha.

            Escravo dos brancos e escravo dos negros, Ti Noel se cansou dos homens e se cansou de ser homem.Usando de seus poderes, se transformou em ganso. Mas, quando quis ocupar um lugar no clã, foi hostilizado. E, hostilizado foi também pelas fêmeas, embora lhes mostrasse o lugar melhor para encontra as mais suaves raízes.

            Compreendeu que os anos passariam e que ele jamais seria aceito. Não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos são iguais. Nenhum ganso conhecido havia cantado, nem dançado no seu casamento. Nenhum dos vivos, o tinha visto nascer”. Só restou a Ti Noel voltar a sua condição humana.

            Outro destino teve o Rei. Abandonado pelos súditos quis eludir-lhes a ira,  suicidando-se com uma bala de ouro. Seu belo uniforme, sua larga fita bicolor, símbolo  de sua investidura e todas as condecorações  que lhe enfeitavam o peito não o impediram de ser mortal.

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