Foi
no Haiti que, no século XVII, irrompeu a grande insurreição negra. A Ilha
alcançava um alto grau de riqueza. As terras cultivadas pertenciam aos brancos
e eram eles que usufruíam de seus frutos. Os negros trabalhavam. De tantos anos
de jugo, de humilhações e torturas, o resultado foi uma revolta que se voltou contra aqueles que
impunham uma vida colmada de penúrias e
foi além. Destruíu as plantações e com elas, toda a riqueza. Os chefes da
revolta se sucederam – Toussaint L’Ouverture, Jean Jacques Dessaline, Pétion e
Christophe que se proclamou rei com o título de Henri I. Era negro mas seus olhos se voltaram para o
mudo dos brancos com tudo o que isso poderia representar de ignomínia em
relação a seu povo. Assim, quando na França, a Revolução Francesa já havia
efetuado mudanças, concedendo direitos às massas até então exploradas,
Cristophe construiu um cenário monárquico repetindo nele os requintes e as
mazelas das cortes européias.
Ti
Noel, o personagem de El reino de este mundo ( 1949), de Alejo Carpentier,
volta de Cuba para seu país onde, diziam,
reinava a justiça depois de tantas injustiças. Caminhava ao acaso quando
chegou ao palácio do Rei. Antes, havia visto negros, trabalhando sob o látego
de outros negros. No palácio e seus jardins onde se erigiam terraços, pérgolas,
estátuas, leões de bronze e onde corriam riachos artificiais, grande foi sua
admiração ao constatar que todos os que aí se moviam eram negros: militares
vestidos de branco, ministros de meias brancas, o cozinheiro com arminho no
boné, o copeiro com correntes de prata, os atores, os lacaios, os músicos, as
mulheres coroadas de plumas e seguindo a moda Império que lhes levantava o
busto.
Não
havia, ainda, entendido bem o que estava vendo quando foi preso. Mais tarde,
depois de nova escravidão, quando outra vez a revolta dos negros procurou
justiça, Ti Noel pode possuir objetos daquele mundo feérico. O palácio foi
saqueado e relógios, cadeiras, baldaquins, divans, lâmpadas, bacias passaram a
ser propriedade daqueles homens e mulheres e crianças que até então mal
possuíam o que vestir e o que comer. Ti Noel passou a ser dono do que pilhara:
um peixe embalsamado, presente da Real
Sociedade Científica de Londres a Victor,
filho de Christophe, uma caixa de bombons de vidro verde e espesso, uma
boneca vestida de pastora e três tomos da Grande Enciclopédia. Neles, Ti Noel
se sentava para comer pedaços de cana de açúcar, ignorando usos e serventias de
coisas que, certamente, pouco tinham que ver com a sua terra e com o seu povo.
Na
verdade, tampouco tinham que ver com a família do Rei. Ao fugir da invasão do
Palácio, a Rainha, ainda usando sapatos de salto alto à moda francesa, torcera
o pé. No dia anterior, diante da doença do Rei, ignorara a etiqueta real para
se agachar na própria alcova onde ele repousava e vigiar a fervura de um cozimento de raízes posto para esquentar sobre
um braseiro de carvão a lenha.
Escravo
dos brancos e escravo dos negros, Ti Noel se cansou dos homens e se cansou de
ser homem.Usando de seus poderes, se transformou em ganso. Mas, quando quis
ocupar um lugar no clã, foi hostilizado. E, hostilizado foi também pelas
fêmeas, embora lhes mostrasse o lugar melhor para encontra as mais suaves
raízes.
Compreendeu
que os anos passariam e que ele jamais seria aceito. Não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos são
iguais. Nenhum ganso conhecido havia cantado, nem dançado no seu casamento. Nenhum dos vivos, o tinha visto nascer”.
Só restou a Ti Noel voltar a sua condição humana.
Outro
destino teve o Rei. Abandonado pelos súditos quis eludir-lhes a ira, suicidando-se com uma bala de ouro. Seu belo
uniforme, sua larga fita bicolor, símbolo
de sua investidura e todas as condecorações que lhe enfeitavam o peito não o impediram de
ser mortal.

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