domingo, 8 de julho de 2007

Nascer outra vez


         Autobiografia parcial e diário poético outonal de Pablo Neruda, assim Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmovil, Losada, 1966) define Memorial de Isla Negra. Publicado no ano de 1964, em 12 de julho, dia do aniversário do Poeta, os poemas que o compõem buscam recriar, em verso, a sua vida. Mas, como ele próprio confessa na conferência que fez na Biblioteca Nacional do Chile, nesse mesmo ano da publicação do livro, ainda que exista a conduzi-lo um fio condutor biográfico, não procurou mais do que expressar alegria ou tristeza num relato que se dispersa e volta a se unir e que submete aos acontecimentos vividos e à natureza que o continua chamando com todas as suas incontáveis vozes. Agrupados em cinco partes, expressam o vazio deixado pela morte de sua mãe, o carinho recebido da tia que o criou e a quem se recusa a chamar de madrasta, a figura adusta do pai, suas descobertas de menino, a revelação da poesia e do mundo com o que tem de injusto, seus amores. Busca de suas raízes, do tempo que passou, registro das emoções sentidas e das vivências pelo mundo afora. À quarta parte pertence o poema “O que nasce comigo”, enumeração de motivos de seus versos, um verdadeiro entranhar-se nas coisas mais comezinhas  da natureza. São três estrofes e a primeira, a mais extensa, começa com o verbo canto a introduzir essa relação do que acontece ao seu redor e que no preciso momento, ele registra: o trabalho do fermento no queijo e no vinagre, o som do leite, caindo em brancura, o esterco recém-formado, o vôo das varejeiras, o besouro e seu alimento, o líquen e suas germinações silenciosas. Canto ao capim que nasce comigo diz num se igualar à natureza em algo muito simples e que ele irá repetir ao dizer que nasce com tudo o que está nascendo e unido ao crescimento, ao que brota, ao que se propaga: em estame, em tigre, em geléias.

            A segunda estrofe se inicia com o pronome eu, afirmando pertencer à fecundação e nos versos seguintes se delineia com adjetivos elogiosos (sou jovem, sou puro) e, em acorde, com elementos da natureza (a água, o ar,) e com a soberania do tempo, com a cor da noite. Nos três últimos versos da estrofe, torna a se definir como um ser que somente ficará estático se for tão mineral que não veja, nem escute, nem participe do que nasça e cresça.

            A terceira estrofe, feita de sete pequenos versos, é explicação de uma escolha do Poeta: afirma sua visão de mundo no desejo de aprender aos poucos, folha por folha, pequenezes de um universo maior, a selva, e daí extrapolar para um desusado aprender: ser raiz, barro profundo, terra calada, noite cristalina” e, ainda, pouco a pouco, a selva inteira.

            Algo dessa história que lhe contava Miguel Hernández em Madrid: havia sido pastor de cabras e se impressionava ao pôr os ouvidos sobre o ventre das cabras que dormiam pois assim escutava o ruído do leite que chegava aos úberes. Algo, também, talvez, das últimas linhas de La tentation de Saint Antoine, de Gustave Flaubert, que impressionou a tantos escritores: Tenho vontade de [...] me dividir por tudo, estar em tudo, me emanar com os odores, desenvolver-me como as plantas, deslizar como a água, vibrar como o som, brilhar como a luz, aproximar-me de todas as formas, penetrar em cada átomo, descer até o fundo da matéria – ser matéria!.

            Breves detalhes – encontro de afinidades, estímulo criador – que entrelaçam o sentir do Poeta à reminiscências, cujas pegadas se mostram sutis o suficiente para apenas serem percebidas e não privam seus  versos da beleza e do lirismo que eles sempre soem ter.

 

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