Autobiografia
parcial e diário poético outonal de Pablo Neruda, assim Emir Rodriguez Monegal
(El viajero inmovil, Losada, 1966)
define Memorial de Isla Negra.
Publicado no ano de 1964, em 12 de julho, dia do aniversário do Poeta, os
poemas que o compõem buscam recriar, em verso, a sua vida. Mas, como ele
próprio confessa na conferência que fez na Biblioteca Nacional do Chile, nesse
mesmo ano da publicação do livro, ainda que exista a conduzi-lo um fio condutor
biográfico, não procurou mais do que expressar alegria ou tristeza num relato
que se dispersa e volta a se unir e que submete aos acontecimentos vividos e à
natureza que o continua chamando com
todas as suas incontáveis vozes. Agrupados
em cinco partes, expressam o vazio deixado pela morte de sua mãe, o carinho
recebido da tia que o criou e a quem se recusa a chamar de madrasta, a figura
adusta do pai, suas descobertas de menino, a revelação da poesia e do mundo com
o que tem de injusto, seus amores. Busca de suas raízes, do tempo que passou,
registro das emoções sentidas e das vivências pelo mundo afora. À quarta parte
pertence o poema “O que nasce comigo”, enumeração de motivos de seus versos, um
verdadeiro entranhar-se nas coisas mais comezinhas da natureza. São três estrofes e a primeira,
a mais extensa, começa com o verbo canto
a introduzir essa relação do que acontece ao seu redor e que no preciso
momento, ele registra: o trabalho do fermento no queijo e no vinagre, o som do
leite, caindo em brancura, o esterco recém-formado, o vôo das varejeiras, o besouro
e seu alimento, o líquen e suas
germinações silenciosas. Canto ao capim
que nasce comigo diz num se igualar à natureza em algo muito simples e que
ele irá repetir ao dizer que nasce com tudo o que está nascendo e unido ao
crescimento, ao que brota, ao que se propaga: em estame, em tigre, em
geléias.
A
segunda estrofe se inicia com o pronome eu,
afirmando pertencer à fecundação e nos versos seguintes se delineia com
adjetivos elogiosos (sou jovem, sou puro) e, em acorde, com elementos da
natureza (a água, o ar,) e com a soberania do tempo, com a cor da noite. Nos
três últimos versos da estrofe, torna a se definir como um ser que somente
ficará estático se for tão mineral que
não veja, nem escute, nem participe do que nasça e cresça.
A
terceira estrofe, feita de sete pequenos versos, é explicação de uma escolha do
Poeta: afirma sua visão de mundo no desejo de aprender aos poucos, folha por folha, pequenezes de um universo
maior, a selva, e daí extrapolar para um desusado aprender: ser raiz, barro profundo, terra calada,
noite cristalina” e, ainda, pouco a pouco, a selva inteira.
Algo
dessa história que lhe contava Miguel Hernández em Madrid: havia sido pastor de
cabras e se impressionava ao pôr os
ouvidos sobre o ventre das cabras que dormiam pois assim escutava o ruído do
leite que chegava aos úberes. Algo, também, talvez, das últimas linhas de La tentation de Saint Antoine, de
Gustave Flaubert, que impressionou a tantos escritores: Tenho vontade de [...] me dividir por tudo, estar em tudo, me emanar com os odores, desenvolver-me como
as plantas, deslizar como a água, vibrar como o som, brilhar como a luz,
aproximar-me de todas as formas, penetrar em cada átomo, descer até o fundo da
matéria – ser matéria!.
Breves
detalhes – encontro de afinidades, estímulo criador – que entrelaçam o sentir do
Poeta à reminiscências, cujas pegadas se mostram sutis o suficiente para apenas
serem percebidas e não privam seus versos
da beleza e do lirismo que eles sempre soem ter.
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