
No decorrer da
narrativa, sua voz, raramente, é ouvida porque responde às interpelações com um
gesto. Quase sempre, um menear de cabeça para expressar ou uma negativa como
quando lhe perguntam se tem conhecidos em São Paulo, se conhece o litoral, se
achou algo estranho no bule de café ou uma afirmação, concordando com o que lhe
dizem. Ao sair da cadeia, um companheiro de prisão o leva para um hotel. À
pergunta do gerente, quando preenchem a ficha sobre a procedência dos hóspedes,
o narrador diz que ele ia dizer, no
caso a verdade, mas o outro, logo interrompe pois não seria ela conveniente. No
dia seguinte, abandona o hotel sem dizer para onde ia o que provoca o
comentário: ele fala pouco, opinião
que é reafirmada por Norberto que o cooptou para a viagem e o atrelou às suas
andanças : Muito pouco. De fato, ele
muitas vezes deixa a frase do interlocutor cair no vazio ou responde qualquer
coisa, cujo sentido não é dado a conhecer ao leitor que, também, apenas
sabe o que diz o interlocutor, como no primeiro e no segundo capítulo do
romance. No bonde, ele pretende pagar a passagem com uma moeda em desuso e o
cobrador diz de suas razões diante de um caso assim; no armazém, a moeda é
negociada mas na compra dos cigarros falta o dinheiro para os fósforos que,
então, lhe é dado por um dos que, ali, no armazém, presenciava a cena. Mais
adiante, o narrador diz que o coronel falava com ele, ao se dirigir para o
carro que os levaria a Caxias e lhe fazia perguntas. O leitor não sabe sobre o
que falavam e nem suas respostas. E, já em Santa Maria, eles saem à noite para
caminhar debaixo de chuva. O coronel não
parava a conversa. Mas o inconveniente é
que, às vezes, o companheiro mal o ouvia, mesmo que gritasse, devido ao barulho
do temporal. – Em que mês você esteve em São Paulo? Esta pergunta saiu berrada.
Um sujeito que disparava da chuva, entreparou, julgando que fosse com ele.
Depois de se informar, o coronel refletiu, calculou e chegou à conclusão de que
há um mês (época em que o outro passara por lá), ele ainda não se tinha movido
da fronteira, para aquela sua viagem de exploração à “capital do grande Estado.” – E o amigo gostou? Gostara. Há nessa
seqüência a situação (os dois caminhando sob a chuva), as interpelações do
coronel, envolvendo inclusive um terceiro, as próprias elucubrações e
conclusões para, então, perguntar se o outro havia gostado. E a resposta não
chega do inquirido, mas do narrador, resumida numa única palavra e, na verdade,
o leitor não fica a saber se o louco do Catí a pronunciara. Quando, no Rio de
Janeiro, os que dele cuidavam, queriam mandá-lo embora para o sul. Não lhe
perguntam nada e decidem por ele, ao pedir a doação da passagem à polícia. O
funcionário pergunta se ele pensava voltar por mar. Julgavam que sim, por
qualquer via, responderam. Mas ele esclareceu: -Eu quero por terra e mais não disse porque não tinha nenhum outro desejo
a exprimir. Assumira outra vez o ar indiferente.
Ao se assustar com
a hospedaria em cujo pátio, com seus
companheiros de viagem, ele pernoitara e que na luz da manhã, adquirira, para
ele uma aparência – redutos, quartel,
casamatas – ameaçadora, foge para o mato próximo. Os que vão buscá-lo o
encontram, exausto, sentado num tronco. Sentem pena ao ouvi-lo dizer -Me levem que eu quero dormir e o
carregam de volta. Antes, exclamara cheio de medo: ISTO! Isto é o Catí e que
repete no seu desespero: - É o Catí...
E, assim, inequívoca, sempre mascarada pela emoção a sua voz, quando pronuncia
a palavra Catí, levado pelo pânico. Ao perceber os policiais que esperam por
ele e por Norberto, seu companheiro de viagem, na chegada do ônibus em que
viajavam a Araranguá, com a cara de dor e
os olhos fundos escancarados para
aquele aparato, sua voz é de
terror: -Isto! Isto é o Catí. Em
Florianópolis, para onde foram levados, ao serem trancafiados na cela, ele,
encolhido, se aproxima de Norberto perguntando, com medo: -Isto não será o Catí? E,
outra vez, no Rio de Janeiro, se depara com a prisão e os guardas. Tenta
escapar, gritando; - É o Catí! Não me
digam que não! E numa voz berrada e
choramingada a um tempo: - Não me levem prá o Catí!. Mas o guarda o segura com força e o vai arrastando.
Essa relação que ele
faz entre o Catí – o “Castelo”, construído às margens do arroio, comandado por
um homem que detinha um grande poder e dele fazia uso como um senhor feudal – e
a violência de que é vítima (ou que outros possam sofrer, como no caso do
clandestino apanhado em falta, no navio, trazido pelos marinheiros à presença
do comandante) se enraíza nas histórias ouvidas nos dias de sua infância e no
medo que percebeu, na família, ao conversar sobre injustiças; na visão dos
maltrapilhos, descalços, cheios de medo, atados pelo pescoço, sobreviventes da
degola que viu diante dele quando era bem pequeno. Quando no Rio de Janeiro,
Norberto vai levá-lo ao porto para embarcar e, para isso, seria preciso antes
convencê-lo, ele estava quieto. E como criança desamparada, olha para Nanci que
procura vencer-lhe a teimosia e sussurra: - Eles
vão me levar prá o Catí..., queixa que ela não entende e que Norberto não
leva a sério, rotulando de mania que ele
tem, todo esse medo que sente, única razão que o faz falar.
E, assim, perdido sem liames, num itinerário
que percorre conduzido pelo acaso e na vontade de outrem, sua figura se esboça
no silêncio e nessa expressão reiterada que emerge do passado, conduzindo
ambos, o calar e o gritar, a um presente subjugado à ditadura de Getúlio
Vargas, num sutil enlace da criação e da realidade. O inegável registro da
maestria de Dyonélio Machado.
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