domingo, 14 de janeiro de 2001

O nome

           O Louco do Catí foi publicado pela Globo de Porto Alegre, em 1942, sete anos depois de Os ratos, a obra mais conhecida de Dyonélio Machado. Como os romances que lhe seguiram, Desolação e Passos perdidos, verdadeiras obras primas da Literatura Brasileira, O Louco do Catí não foi, ainda, compreendido, como não o foi – a psicanálise e o mito não tinham difundidas suas teorias, diz Maria Zenilda Grawunder – na época em que apareceu. Cyro Martins que acompanhou a sua elaboração página a página, como grande amigo de Dyonélio Machado, define o louco do Catí, personagem que dá o nome ao livro, numa síntese simplista : O louco do Catí – o Homem-Cachorro – andava sem rumo pelo mundo, cumprindo sua sina triste. Um dia, sem querer, sem saber, sem nem ao menos cogitar por que, entra numa aventura, com a pouco sorte de um bicho do mato, distraído, que mete a pata numa armadilha. Depois, segue-se toda uma enfiada de incidentes pitorescos, jocosos, amargos, cansativos, tantos e tão variados, que alcançaram e extensão de um romance. Mas, em todos os episódios em que se viu envolvido, ele nunca deixou de ser o que era, uma sombra de gente, um pamonha, uma espécie de vazio deixado entre os outros.
            Porém, se o louco do Cati, viajante inocente e submisso, liame desse percurso no qual é conduzido por mãos desconhecidas, testemunha do que acontece num simplório cotidiano de personagens simplórias, é um personagem que apaixona e comove, aproximar-se aos mecanismos ficcionais que o situam no romance, leva a vislumbrar no seu autor, um verdadeiro admirável artífice da narrativa. Assim, em meio às zonas de sombra, à brevidade sugestiva dos diálogos, às pequenas histórias que se acoplam ao relato, à síntese na elaboração dos tipos e situações, à inserção de lembranças do passado no presente narrativo, o louco do Catí se constrói pelo silêncio, pelo olhar, pelos gestos, por um ou outro traço físico, pelos seus momentos de susto. Surge, sempre, apenas, em breves seqüências que o mostram, muitas vezes, pelo olhar, pelas palavras, pelas decisões dos que, por uma razão ou outra, se conduzem como se fossem seus donos, ainda que, ignorando, quem ele é. Em nenhum momento do relato é pronunciado o seu nome e, então, é designado segundo a impressão que ele causa nos outros ou conforme as circunstâncias o determinem.

 O romance tem início com a expressão O passageiro do bonde, expressão que o iguala aos demais passageiros. Porém, deles se distingue ao ser chamado de homem do chapéu. E o narrador, a seguir, o irá designando por o homem,o sujeito, o outro, o viajante, o indivíduo, o sujeito do chapéu, figura estranha, o desconhecido, o companheiro .Rótulos aos quais se acrescentam os que  lhe são dados por aqueles com quem, ainda que por breve espaço de tempo, ele passa a conviver.

 Meio maluco, presume dele o comandante do barco em que viajava, sugerindo que fosse entregue à polícia; maluco, o designa, sem maldade, pois também lhe diz nosso amigo, ou este aqui, Lopo, que o ajuda, e muito, no Rio de Janeiro quando sai da prisão. E, um, entre os que serão seus companheiros de viagem, antes que ela se iniciasse, opina: Este sujeito é meio louco. E se não o era, possuía todo o jeito. Mas, também, logo, alguém observa que isso não tem importância. Incorporado ao grupo, sentado ao lado de Norberto, no caminhãozinho, segue na viagem, uma viagem, curta, divertida, de prazer, até o mar. Mas, as estradas ruins, a fragilidade do pequeno caminhão não deixaram chegar ao mar. Já era noite quando, em Palmares, perto da casa onde lhes propiciaram algo para comer, passaram a noite. Foi de madrugada que ele, diante da silhueta da casa, contrafortes e dependências e de seu dono, grande,  grosso, cabeleira lançada para trás, bigodudo... se assustou e fugiu para o pequeno mato ali perto. Perplexos diante do acontecido, os companheiros de viagem precisam explicar que mal o conheciam, também aceitar o epíteto de louco que lhe põem, hesitando em ir buscá-lo onde se escondera. Dona Rita, a dona da casa que, pouco antes, se inteirara do acontecido, exclama: O pobre. E, assim lhe diz o personagem chamado de capitalista ou o médico do navio, pobre homem. É sua carga, diz alguém para Norberto que dele se fizera responsável e alguém hesita em chamá-lo de  maluco; ainda, há quem a ele se refira como ao outro e há o preso que o designa de amigo. Somente na página 105, das 283 que possui o romance, é que, pela primeira vez, aparece a expressão louco do Catí. Já estavam presos, Norberto e ele quando se resistiu a entrar na cadeia e, por isso foi arrastado pelo guarda que, violentamente, o jogou para dentro da cela. Apavorado, gritou que não o levassem para o Catí. Então, no dia seguinte, um dos presos, relacionando o estar fora de si com a palavra que pronunciara, o designa por o louco do Catí. Mais tarde, já livres, o doutor Lourenço Marques se admira de como é chamado. Mas Catí não é nome, acreditando tratar-se de uma abreviatura de gracinha, que se põe nas pessoas em casa... Ele talvez mesmo se chame Catarino... Como o médico é do Pará, a palavra, na verdade, um topônimo do Rio Grande – 0 Catí é um arroio – para ele, não possui o significado, adquirido nos últimos anos do século XIX, logo depois de terminada a revolução maragata quando ali perto foi construído um quartel, destinado a patrulhar o trecho de fronteira com o Uruguai, tido como o mais propenso à invasão de grupos revolucionários ali  reunidos. Seu  comandante, o coronel João Francisco se tornou famoso pelas atrocidades que praticou. Daí, também, a palavra não originar dúvidas para as crianças da casa de pouso, em Lages, onde ficou por uns tempos. Logo estavam se dando muito bem com ele e o chamavam de seu Catí, na ingenuidade da meninice e alheias à relação da palavra com o que ocorrera no extremo sul do Rio Grande há tantos anos passados. Lugar que o pai, no entanto, conhecera e que situa – Fica no município de Santana, no Rio Grande. Perto da fronteira com o Estado oriental – quando a mulher pergunta como é o nome do recém chegado.


            Nesse diálogo do capítulo Outro que conhece o Catí, se revela a excepcional maestria do narrador. Às frases, ditas em voz alta, se entrelaçam murmúrios; às interrogações, respostas interrompidas; às informações detalhadas, as zonas de sombras em que os personagens sabem mais do que o leitor ou, por vezes, igualmente, pouco sabem. E principalmente, porque as perguntas sobre o nome do seu hóspede levam ao Catí. O motorista que o trouxera e que o hospeda diz para a mulher que sabia muito: os horrores, as torturas, as perseguições, os degolamentos. Depois de reviver essas lembranças, termina a cerveja e tranqüiliza a mulher : De-certo ele nem  tinha nada que ver com o Catí. Ainda se haveria de saber...

             Porém, o que ele tinha a ver, sabe o leitor: a marca do medo que lhe ficara na alma e que por vezes, irrompe no seu presente, deixando-o transido de pavor. Sombra a alimentar o romance, sem ter um nome – que o escritor não quis dar – ele pode ser, como pretende Cyro Martins (“Um escritor aberto ao espanto” in Cadernos de Porto & Vírgula, Porto Alegre 1995), o símbolo de  toda uma legião de vitimas da violência ocorrida no Catí. E Cati, igualmente, pode ser no romance de Dyonélio Machado,  a metáfora do país sob a ditadura de GetúlioVargas. Como, também, um possível  símbolo dos que sofrem danos e perdas advindas da desordem social. Que é a lei que impera no Continente.
 

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