Porém,
se o louco do Cati, viajante inocente e submisso, liame desse percurso no qual
é conduzido por mãos desconhecidas, testemunha do que acontece num simplório
cotidiano de personagens simplórias, é um personagem que apaixona e comove, aproximar-se aos
mecanismos ficcionais que o situam no romance, leva a vislumbrar no seu autor,
um verdadeiro admirável artífice da narrativa. Assim, em meio às zonas de
sombra, à brevidade sugestiva dos diálogos, às pequenas histórias que se
acoplam ao relato, à síntese na elaboração dos tipos e situações, à inserção de
lembranças do passado no presente narrativo, o louco do Catí se constrói pelo
silêncio, pelo olhar, pelos gestos, por um ou outro traço físico, pelos seus
momentos de susto. Surge, sempre, apenas, em breves seqüências que o mostram,
muitas vezes, pelo olhar, pelas palavras, pelas decisões dos que, por uma razão
ou outra, se conduzem como se fossem seus donos, ainda que, ignorando, quem ele
é. Em nenhum momento do relato é pronunciado o seu nome e, então, é designado
segundo a impressão que ele causa nos outros ou conforme as circunstâncias o
determinem.
O romance tem início com a expressão O passageiro do bonde, expressão que o
iguala aos demais passageiros. Porém, deles se distingue ao ser chamado de homem do chapéu. E o narrador, a seguir,
o irá designando por o homem,o sujeito, o outro, o viajante, o
indivíduo, o sujeito do chapéu, figura estranha, o
desconhecido, o companheiro .Rótulos aos quais se acrescentam os que lhe são dados por aqueles com quem, ainda que
por breve espaço de tempo, ele passa a conviver.
Meio
maluco, presume dele o comandante do barco em que viajava, sugerindo que
fosse entregue à polícia; maluco, o
designa, sem maldade, pois também lhe diz nosso
amigo, ou este aqui, Lopo, que o ajuda, e muito, no Rio
de Janeiro quando sai da prisão. E, um, entre os que serão seus companheiros de
viagem, antes que ela se iniciasse, opina: Este
sujeito é meio louco. E se não o era, possuía todo o jeito. Mas,
também, logo, alguém observa que isso não tem importância. Incorporado ao
grupo, sentado ao lado de Norberto, no caminhãozinho, segue na viagem, uma viagem,
curta, divertida, de prazer, até o mar. Mas, as estradas ruins, a
fragilidade do pequeno caminhão não deixaram chegar ao mar. Já era noite
quando, em Palmares, perto da casa onde lhes propiciaram algo para comer,
passaram a noite. Foi de madrugada que ele, diante da silhueta da casa,
contrafortes e dependências e de seu dono, grande, grosso, cabeleira lançada para trás, bigodudo... se assustou e fugiu para o
pequeno mato ali perto. Perplexos diante do acontecido, os companheiros de
viagem precisam explicar que mal o conheciam, também aceitar o epíteto de louco
que lhe põem, hesitando em ir buscá-lo onde se escondera. Dona Rita, a dona da
casa que, pouco antes, se inteirara do acontecido, exclama: O pobre. E, assim lhe diz o personagem
chamado de capitalista ou o médico do navio, pobre homem. É sua carga,
diz alguém para Norberto que dele se fizera responsável e alguém hesita em
chamá-lo de maluco; ainda, há quem a ele se refira
como ao outro e há o preso que o
designa de amigo. Somente na página
105, das 283 que possui o romance, é que, pela primeira vez, aparece a
expressão louco do Catí. Já estavam
presos, Norberto e ele quando se resistiu a entrar na cadeia e, por isso foi
arrastado pelo guarda que, violentamente, o jogou para dentro da cela.
Apavorado, gritou que não o levassem para o Catí. Então, no dia seguinte, um
dos presos, relacionando o estar fora de si com a palavra que pronunciara, o
designa por o louco do Catí. Mais
tarde, já livres, o doutor Lourenço Marques se admira de como é chamado. Mas Catí não é nome, acreditando
tratar-se de uma abreviatura de gracinha,
que se põe nas pessoas em casa... Ele
talvez mesmo se chame Catarino... Como o médico é do Pará, a palavra, na
verdade, um topônimo do Rio Grande – 0 Catí é um arroio – para ele, não possui
o significado, adquirido nos últimos anos do século XIX, logo depois de
terminada a revolução maragata quando ali perto foi construído um quartel,
destinado a patrulhar o trecho de fronteira com o Uruguai, tido como o mais
propenso à invasão de grupos revolucionários ali reunidos. Seu
comandante, o coronel João Francisco se tornou famoso pelas atrocidades
que praticou. Daí, também, a palavra não originar dúvidas para as crianças da
casa de pouso, em Lages, onde ficou por uns tempos. Logo estavam se dando muito
bem com ele e o chamavam de seu Catí, na ingenuidade da meninice e alheias à
relação da palavra com o que ocorrera no extremo sul do Rio Grande há tantos
anos passados. Lugar que o pai, no entanto, conhecera e que situa – Fica no município de Santana, no Rio Grande. Perto da fronteira com o Estado
oriental – quando a mulher pergunta como é o nome do recém chegado.
Nesse
diálogo do capítulo Outro que conhece o
Catí, se revela a excepcional maestria do narrador. Às frases, ditas em voz
alta, se entrelaçam murmúrios; às interrogações, respostas interrompidas; às
informações detalhadas, as zonas de sombras em que os personagens sabem mais do
que o leitor ou, por vezes, igualmente, pouco sabem. E principalmente, porque
as perguntas sobre o nome do seu hóspede levam ao Catí. O motorista que o
trouxera e que o hospeda diz para a mulher que sabia muito: os horrores, as torturas, as perseguições,
os degolamentos. Depois de reviver essas lembranças, termina a cerveja e
tranqüiliza a mulher : De-certo ele
nem tinha nada que ver com o Catí. Ainda se haveria de saber...
Porém, o que ele tinha a ver, sabe o leitor: a
marca do medo que lhe ficara na alma e que por vezes, irrompe no seu presente,
deixando-o transido de pavor. Sombra a alimentar o romance, sem ter um nome –
que o escritor não quis dar – ele pode ser, como pretende Cyro Martins (“Um
escritor aberto ao espanto” in Cadernos
de Porto & Vírgula, Porto Alegre 1995), o símbolo de toda uma legião de vitimas da violência
ocorrida no Catí. E Cati, igualmente, pode ser
no romance de Dyonélio Machado, a metáfora do país sob a ditadura de GetúlioVargas. Como, também, um possível símbolo dos que sofrem danos e perdas advindas da desordem
social. Que é a lei que impera no Continente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário