Designado por passageiro, homem do chapéu,
sujeito, o outro, o viajante, o indivíduo,
o desconhecido, o companheiro, o pobre, seu Catí, o louco do Catí, sua presença apenas se esboça em uma ou outra
referência ao aspecto físico, aos silêncios, aos gestos, ao olhar. Um olhar que
se define, principalmente, por aquilo que o atrai. Quase sempre, olha sem
enxergar ou interessado no que está a seu redor, nesses espaços para onde o
levam e que desconhece. Quando viaja pelas estradas olha a paisagem, olha prá frente, prá longe; cismando, põe os
olhos no alto do cerro, põe os olhos no espaço. Preso, seu horizonte se acanha
e olha para um só lugar, que pode ser a lâmpada da cela. Já solto, por onde
anda, olha muito para tudo. Seus
olhos mergulham longe na praça,
percorrem as adjacências, buscam as igrejas numa atenção que se expressa,
também, nos gestos que acompanham o olhar. Quase
destroncava o pescoço em São Paulo para ver
tudo, torcia-se para o lado e para trás para ver a igreja; cerrava os
lábios, comprimia as feições para ver
melhor. Em Santa Maria, já voltando para a sua terra, ao passar diante de uma
igreja muito grande, quis olhar para o alto das torres, mas a chuva o impediu
de ver. Mas, uns passos adiante, tornou
a olhar e as torres, em cima, faziam-se
escuras, denegridas, confundindo-se com
a treva molhada da noite. E esse olhar que pode se demorar no carro-motor
que adentra na estação ou se fixa, abismado, no mar, pode, também, se mostrar
como de um sonâmbulo ou de um sonhador. Assim o vê seu companheiro, na prisão: estendido
no beliche, de barriga para cima, as mãos
inertes, o olhar sonhador, profundo, como diante dum horizonte infinito. Tranqüilidade que se esvai, quando,
na fazenda, perto de Quaraí, ouve dizer Catí ( com as chuvas o arroio crescera
e não dava passo) e ele, revivendo os terrores da época em que nas suas margens
o coronel João Francisco cometia as atrocidades que lhe deram o epíteto de
hiena estremece e seus olhos são
habitados por uma faísca trêmula onde
luzia inquietação. Mais adiante, tornam, a seu redor, a falar na cheia do
arroio: O Catí era terrível. Espraiava
muito. Menção que, de medo, faz com
que seus olhos fuzilem. Buscando comunicar-se é o seu olhar para o médico,
companheiro na viagem de navio ao voltar para o sul e que o leva passear em
Florianópolis quando o navio ali atraca. Ele farejou muito todo aquele centro da cidade: a praça, a igreja, a casa
de governo, a rua principal e o seu movimento. Com o focinho no ar, a capa
voando ao vento forte, as vezes se retardava. O médico advertia-o. Ele então se
apressava. E quando de novo se reunia ao companheiro, tinha um olhar de expectativa e de consulta. O
médico, explica ser o seu desejo que ele veja tudo e que ainda tenham tempo
para um cafezinho. Como acontece em todo o relato, se trata de um interesse por ele – o médico
deseja que ele conheça a cidade – mas,
no entanto, não leva em consideração o que ele possa querer ou o ritmo em que o
faria. No capítulo em que as pessoas que o hospedam, no Rio de Janeiro, o
preparam para enviá-lo de volta, todos tentam persuadi-lo, pois não queria
viajar por mar. Ele, porém, sentado na cama de ferro, não se mexe. Alguém pensa
em usar a força; outro, o engano. A dona da casa arranjara-lhe uma pequena
maleta e uma das filhas faz afirmações convictas para o animar, buscando
vencer-lhe a obstinação. E já enternecida com o olhar que ele lhe botava. Um olhar de pureza de criança a anteceder a queixa: “-Eles vão me levar prá
o Catí..." A narrativa não diz, mas a
próxima seqüência revela que o seu desespero não obteve resposta. E,
submeteu-se. Põem-lhe o chapéu. Carregam-lhe a mala e, ainda, seu
olhar impotente e doce procura a moça que, embora cheia de emoção,
nada faz para ajudá-lo. O parágrafo seguinte esclarece que no porto ele foi
entregue a um sujeito amigo de um daqueles que se encarregara de embarcá-lo.
Mais uma vez, no seu desamparo, estará preso a quem, até então, lhe era um
desconhecido.
Esboço perfeito do homem só que, em meio ao vazio que
o cerca – sem identidade, sem laços afetivos a não ser os efêmeros
estabelecidos ao acaso, sem história de vida – procura, pelo olhar, abarcar
horizontes, a cidade, a igreja, um outro ser humano ou a si mesmo. Mas, nenhuma
resposta lhe é dada e, lentamente, na mais escorreita simplicidade estilística
– mostra da maestria ficcional de Dyohélio Machado – ele apenas se desenha na
sua rara e inesquecível profundidade lírica.

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