domingo, 21 de janeiro de 2001

Olhar o vazio

         O passageiro do bonde ocupou o seu lugar e se pôs a apagar um ponto à sua frente com um olhar sem conteúdo. Desceu no fim da linha e foi comprar cigarros no armazém. Lá incorporou-se ao grupo nessa viagem breve (assim disseram), em busca do mar. Para ele, no entanto, foi bem longa e, por vezes, aziaga. Da praia, não voltou com os outros e, com um deles, seguiu para o norte. E foi preso e levado para o Rio de Janeiro; e, solto, enviado, outra vez, para o sul. Longo itinerário de ida e de volta em que entrega seus dias aos que se encarregam de decidir-lhe os passos. Um personagem, admiravelmente, construído por Dyonélio Machado em o Louco do Catí, publicado em 1942, pela editora Globo de Porto Alegre que, a exemplo de outras obras da Literatura Brasileira, foi esquecida.
         Designado por passageiro, homem do chapéu, sujeito, o outro, o viajante, o indivíduo, o desconhecido, o companheiro, o pobre, seu Catí, o louco do Catí, sua presença apenas se esboça em uma ou outra referência ao aspecto físico, aos silêncios, aos gestos, ao olhar. Um olhar que se define, principalmente, por aquilo que o atrai. Quase sempre, olha sem enxergar ou interessado no que está a seu redor, nesses espaços para onde o levam e que desconhece. Quando viaja pelas estradas olha a paisagem, olha prá frente, prá longe; cismando, põe os olhos no alto do cerro, põe os olhos no espaço. Preso, seu horizonte se acanha e olha para um só lugar, que pode ser a lâmpada da cela. Já solto, por onde anda, olha muito para tudo. Seus olhos mergulham longe na praça, percorrem as adjacências, buscam as igrejas numa atenção que se expressa, também, nos gestos que acompanham o olhar. Quase destroncava o pescoço em São Paulo para ver tudo, torcia-se para o lado e para trás para ver a igreja; cerrava os lábios,  comprimia as feições para ver melhor. Em Santa Maria, já voltando para a sua terra, ao passar diante de uma igreja muito grande, quis olhar para o alto das torres, mas a chuva o impediu de ver. Mas, uns passos  adiante, tornou a olhar e as torres, em cima, faziam-se escuras, denegridas, confundindo-se com a treva molhada da noite. E esse olhar que pode se demorar no carro-motor que adentra na estação ou se fixa, abismado, no mar, pode, também, se mostrar como de um sonâmbulo ou de um sonhador. Assim o vê seu companheiro, na prisão: estendido no beliche, de barriga para cima, as mãos inertes, o olhar sonhador, profundo, como diante dum horizonte infinito. Tranqüilidade que se esvai, quando, na fazenda, perto de Quaraí, ouve dizer Catí ( com as chuvas o arroio crescera e não dava passo) e ele, revivendo os terrores da época em que nas suas margens o coronel João Francisco cometia as atrocidades que lhe deram o epíteto de hiena  estremece e seus olhos são habitados por uma faísca trêmula onde luzia inquietação. Mais adiante, tornam, a seu redor, a falar na cheia do arroio: O Catí era terrível. Espraiava muito.  Menção que, de medo, faz com que seus olhos fuzilem. Buscando comunicar-se é o seu olhar para o médico, companheiro na viagem de navio ao voltar para o sul e que o leva passear em Florianópolis quando o navio ali atraca. Ele farejou muito todo aquele centro da cidade: a praça, a igreja, a casa de governo, a rua principal e o seu movimento. Com o focinho no ar, a capa voando ao vento forte, as vezes se retardava. O médico advertia-o. Ele então se apressava. E quando de novo se reunia ao companheiro, tinha um olhar de expectativa e de consulta. O médico, explica ser o seu desejo que ele veja tudo e que ainda tenham tempo para um cafezinho. Como acontece em todo o relato, se  trata de um interesse por ele – o médico deseja que ele conheça a cidade –  mas, no entanto, não leva em consideração o que ele possa querer ou o ritmo em que o faria. No capítulo em que as pessoas que o hospedam, no Rio de Janeiro, o preparam para enviá-lo de volta, todos tentam persuadi-lo, pois não queria viajar por mar. Ele, porém, sentado na cama de ferro, não se mexe. Alguém pensa em usar a força; outro, o engano. A dona da casa arranjara-lhe uma pequena maleta e uma das filhas faz afirmações convictas para o animar, buscando vencer-lhe a obstinação. E já enternecida com o olhar que ele lhe botava. Um olhar de pureza de criança a anteceder a queixa: “-Eles vão me levar prá o Catí..." A narrativa não diz,  mas a próxima seqüência revela que o seu desespero não obteve resposta. E, submeteu-se. Põem-lhe o chapéu. Carregam-lhe a mala e, ainda, seu  olhar impotente e doce procura a moça que, embora cheia de emoção, nada faz para ajudá-lo. O parágrafo seguinte esclarece que no porto ele foi entregue a um sujeito amigo de um daqueles que se encarregara de embarcá-lo. Mais uma vez, no seu desamparo, estará preso a quem, até então, lhe era um desconhecido.

Esboço perfeito do homem só que, em meio ao vazio que o cerca – sem identidade, sem laços afetivos a não ser os efêmeros estabelecidos ao acaso, sem história de vida – procura, pelo olhar, abarcar horizontes, a cidade, a igreja, um outro ser humano ou a si mesmo. Mas, nenhuma resposta lhe é dada e, lentamente, na mais escorreita simplicidade estilística – mostra da maestria ficcional de Dyohélio Machado – ele apenas se desenha na sua rara e inesquecível profundidade lírica.

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