domingo, 7 de janeiro de 2001

O Retrato 3

 
            O banco, pintado de branco, é de madeira. Há uma árvore de longo tronco, uma sebe cheia de flores, um céu sem nuvens: o cenário onde se inscreve a imagem de Delmira Agustini que, absorta na leitura de um livro, se deixa fotografar.

            Omar Prego Gadea, no romance Delmira (Montevideu, Alfaguara, l996), ao seguir os passos da poetisa uruguaia, nos seus últimos dias de vida, prendeu-se a um punhado de papéis, à lembrança no coração de alguns, à imagens que fixaram o fugidio de um instante.

            Ao se deter nessa foto de Delmira Agustini, se esquiva de precisões – deve ser verão ou primavera porque não há folhas secas na grama e brancas ou amarelas parecem ser as flores que enchem a sebe e, provavelmente, de poesia, o livro que Delmira tem nas mãos. E, também, provavelmente, foi a poucos metros dela, que o fotógrafo instalou o seu tripé para se esconder sob o pano preto que o protege para operar sem temor no seu reduto inacessível à luz e observar esse mundo ao contrário [...]. O romancista lhe fixa o gesto que fará com que o diafragma se abra e se feche num rápido instante para dar passagem à luz, às formas, às sombras [...] que irão mostrar Delmira como ela, talvez, o tenha desejado, entregue à paz de estar sozinha, um livro aberto entre as mãos. Ela era jovem e, anos depois, foi encontrada morta, num quarto barato de pensão, ao lado do ex-marido agonizante. Conjecturas, invenções, falsidades estiveram presentes nos relatos e crônicas que noticiaram o fato e, desejando, quem sabe limpar a lembrança de sua amiga de tantas torpezas, Alberto Zum Felde, respeitado critico literário, escreveu o que o romancista define como uma espécie de oração fúnebre na qual afirma que os jornais, ao encherem as páginas para informar sobre o crime do qual Delmira fora vítima, não tiveram respeito, nem piedade na busca de um sensacionalismo realista no qual a parte mais odiosa coube à fotografia. 

            O romancista opta por descrever uma delas em que a poetisa aparece num ignóbil primeiro plano, estendida no chão, com o rosto para o teto. Tirada de um ângulo no qual a desordem dos cabelos parece invadir o olho procaz da câmara, mostra um de seus braços alongados no chão ensangüentado, o outro sobre o peito e as pernas um pouco dobradas. Nenhum outro detalhe lhe interessa. No entanto, na busca de apreender os enigmas dessa vida sobre a qual se debruça, se permite imaginar a serenidade que, morta, Delmira Agustini parece invocar e que, talvez, se deva à postura desinteressada de ausência, escolhida para esperar a morte, essa morte trágica, por ela pressentida desde a infância cujo rosto esquivo tinha aprendido a conhecer e a tolerar ou admitir.

Estabelece, assim, e, fortemente, um laço entre a imagem que vê e o que pensa ser verdadeiro: essa espécie de visão fatalista da vida que ele atribui à poetisa. O que foi e o que poderia ter sido, se entrelaçam, então, nesse atribuir de significados, exigidos pela sua elaboração ficcional, aos retratos de Delmira Agustini, que, no entanto, permanecem no limite difuso de sua enigmática história. Instrumentos de fixação da memória, esses retratos, ao mesmo tempo que permitem a fabulação emocionada e soberana de Omar Prego Gadea, também a ele se negam a liberar os seus segredos.

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