Na comemoração do
quinto centenário da descoberta do Brasil, alguns índios quiseram se fazer
presente para, pelo menos nesse momento em que a mídia estava interessada em
registrar discursos e festejos, na esperança (que ninguém ignora ser vã) de
fazer ouvir a sua voz sempre silenciada. O resultado
desta presença (certamente, considerada ultrajante) nas festas que as
autoridades se faziam a si mesmas, foi terem sido repelidos pela força policial
a serviço do que é chamado de legalidade: proteger, com muito cuidado, a vida e
as posses da assim chamada elite de turno. Fotos registram a violência com que
foram tratados os manifestantes e, uma delas foi especialmente sugestiva a mostrar um soldado negro (no caso, o repressor) diante de um índio (no caso, o oprimido). Imagem, certamente, curiosa nesse antagonismo que, haja visto os destinos que lhe são comuns, qualquer lógica refutaria. E que pareceria perfeita para ilustrar os inesquecíveis poemas de foi El son intero: Cantos para soldados y sones para turistas.
Publicado em 1937, neles, Nicolás
Guillén continua a linha iniciada sete anos antes com Motivos de son, quando
se inspira na música popular cubana para a elaboração de poemas aos quais se
incorporam expressões lingüísticas, ritmo, mitos, folclore afro-cubanos. A par
dessas inovações que rompem com a tradição poética, atrelada aos modelos
espanhóis, a temática de caráter social que o fazem porta-voz dos sentimentos
da população negra, pobre e analfabeta, é claramente posicionada na ideologia
de esquerda. Em El son entero há uma nota que se destaca e se
repete: a de querer tornar claro para o soldado, que ele é tão pobre e tão
marginalizado quanto aqueles que agride em nome das sapientíssimas leis da
minoria dominante, experta em legislar em causa própria: verdadeiro mote para
onze dos quinze poemas que figuram na primeira parte do livro. No poema
“Soldado, así no há de ser”, uma expressão de primeira pessoa afirma, sem peias,
no primeiro verso, soldado não quero ser e, no último, soldado assim quero
ser. Entre eles, verso a verso, as razões das escolhas no repúdio em obedecer
ordens iníquas (ferir a criança, o negro, o faminto, o velho, a mulher, os
grevistas); na constatação de que para obedecê-las é preciso ter os olhos
vendados e as mãos e os pés atados ou ser aquele que reine como um rei tosco de quartel, que nas plantações de cana arranque o
couro dos que trabalham; na ousadia de sonhar um livre arbítrio para os que
sempre obedeceram. E, assim, chamando as coisas pelo seu nome – olhos cheios de fúria, boca cheia de fel,
feroz como um feitor – e, num ritmo
singelo, Nicolás Guillén no poema incrusta as verdades que jamais são proferidas. Esses versos, como outros do
conjunto que ele chama de cantos para
soldados, poderiam ser um verdadeiro decálogo das casernas se houvesse um
espaço para as utopias no Continente (e alhures). Ou, quem sabe, apenas, um
itinerário a ser seguido. Mas, ou porque assim o desejam ou porque à escuridão são
condenados, os homens dificilmente sabem escolher os caminhos da luz. E se os
poetas são seres iluminados, nem sempre seus versos conseguem clarear a
escuridão onde se inscrevem..domingo, 4 de fevereiro de 2001
Para ouvidos moucos
Na comemoração do
quinto centenário da descoberta do Brasil, alguns índios quiseram se fazer
presente para, pelo menos nesse momento em que a mídia estava interessada em
registrar discursos e festejos, na esperança (que ninguém ignora ser vã) de
fazer ouvir a sua voz sempre silenciada. O resultado
desta presença (certamente, considerada ultrajante) nas festas que as
autoridades se faziam a si mesmas, foi terem sido repelidos pela força policial
a serviço do que é chamado de legalidade: proteger, com muito cuidado, a vida e
as posses da assim chamada elite de turno. Fotos registram a violência com que
foram tratados os manifestantes e, uma delas foi especialmente sugestiva a mostrar um soldado negro (no caso, o repressor) diante de um índio (no caso, o oprimido). Imagem, certamente, curiosa nesse antagonismo que, haja visto os destinos que lhe são comuns, qualquer lógica refutaria. E que pareceria perfeita para ilustrar os inesquecíveis poemas de foi El son intero: Cantos para soldados y sones para turistas.
Publicado em 1937, neles, Nicolás
Guillén continua a linha iniciada sete anos antes com Motivos de son, quando
se inspira na música popular cubana para a elaboração de poemas aos quais se
incorporam expressões lingüísticas, ritmo, mitos, folclore afro-cubanos. A par
dessas inovações que rompem com a tradição poética, atrelada aos modelos
espanhóis, a temática de caráter social que o fazem porta-voz dos sentimentos
da população negra, pobre e analfabeta, é claramente posicionada na ideologia
de esquerda. Em El son entero há uma nota que se destaca e se
repete: a de querer tornar claro para o soldado, que ele é tão pobre e tão
marginalizado quanto aqueles que agride em nome das sapientíssimas leis da
minoria dominante, experta em legislar em causa própria: verdadeiro mote para
onze dos quinze poemas que figuram na primeira parte do livro. No poema
“Soldado, así no há de ser”, uma expressão de primeira pessoa afirma, sem peias,
no primeiro verso, soldado não quero ser e, no último, soldado assim quero
ser. Entre eles, verso a verso, as razões das escolhas no repúdio em obedecer
ordens iníquas (ferir a criança, o negro, o faminto, o velho, a mulher, os
grevistas); na constatação de que para obedecê-las é preciso ter os olhos
vendados e as mãos e os pés atados ou ser aquele que reine como um rei tosco de quartel, que nas plantações de cana arranque o
couro dos que trabalham; na ousadia de sonhar um livre arbítrio para os que
sempre obedeceram. E, assim, chamando as coisas pelo seu nome – olhos cheios de fúria, boca cheia de fel,
feroz como um feitor – e, num ritmo
singelo, Nicolás Guillén no poema incrusta as verdades que jamais são proferidas. Esses versos, como outros do
conjunto que ele chama de cantos para
soldados, poderiam ser um verdadeiro decálogo das casernas se houvesse um
espaço para as utopias no Continente (e alhures). Ou, quem sabe, apenas, um
itinerário a ser seguido. Mas, ou porque assim o desejam ou porque à escuridão são
condenados, os homens dificilmente sabem escolher os caminhos da luz. E se os
poetas são seres iluminados, nem sempre seus versos conseguem clarear a
escuridão onde se inscrevem..
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