domingo, 4 de fevereiro de 2001

Para ouvidos moucos

            Na comemoração do quinto centenário da descoberta do Brasil, alguns índios quiseram se fazer presente para, pelo menos nesse momento em que a mídia estava interessada em registrar discursos e festejos, na esperança (que ninguém ignora ser vã) de fazer ouvir a sua voz sempre silenciada. O resultado desta presença (certamente, considerada ultrajante) nas festas que as autoridades se faziam a si mesmas, foi terem sido repelidos pela força policial a serviço do que é chamado de legalidade: proteger, com muito cuidado, a vida e as posses da assim chamada elite de turno. Fotos registram a violência com que foram tratados os manifestantes e, uma delas foi especialmente sugestiva a mostrar um soldado negro (no caso, o repressor) diante de um índio (no caso, o oprimido). Imagem, certamente, curiosa nesse antagonismo que, haja visto os destinos que lhe são comuns, qualquer lógica refutaria. E que pareceria perfeita para ilustrar os inesquecíveis poemas de  foi El son intero: Cantos para soldados y sones para turistas. Publicado em 1937, neles,  Nicolás Guillén continua a linha iniciada sete anos antes com Motivos de son, quando se inspira na música popular cubana para a elaboração de poemas aos quais se incorporam expressões lingüísticas, ritmo, mitos, folclore afro-cubanos. A par dessas inovações que rompem com a tradição poética, atrelada aos modelos espanhóis, a temática de caráter social que o fazem porta-voz dos sentimentos da população negra, pobre e analfabeta, é claramente posicionada na ideologia de esquerda. Em El son entero há uma nota que se destaca e se repete: a de querer tornar claro para o soldado, que ele é tão pobre e tão marginalizado quanto aqueles que agride em nome das sapientíssimas leis da minoria dominante, experta em legislar em causa própria: verdadeiro mote para onze dos quinze poemas que figuram na primeira parte do livro. No poema “Soldado, así no há de ser”, uma expressão de primeira pessoa afirma, sem peias, no primeiro verso, soldado não quero ser e, no último, soldado assim quero ser. Entre eles, verso a verso, as razões das escolhas no repúdio em obedecer ordens iníquas (ferir a criança, o negro, o faminto, o velho, a mulher, os grevistas); na constatação de que para obedecê-las é preciso ter os olhos vendados e as mãos e os pés atados ou ser aquele que reine como um rei tosco de quartel, que nas plantações de cana arranque o couro dos que trabalham; na ousadia de sonhar um livre arbítrio para os que sempre obedeceram. E, assim, chamando as coisas pelo seu nome – olhos cheios de fúria, boca cheia de fel, feroz como um feitor – e, num ritmo singelo, Nicolás Guillén no poema incrusta as verdades que  jamais são  proferidas. Esses versos, como outros do conjunto que ele chama de cantos para soldados, poderiam ser um verdadeiro decálogo das casernas se houvesse um espaço para as utopias no Continente (e alhures). Ou, quem sabe, apenas, um itinerário a ser seguido. Mas, ou porque assim o desejam ou porque à escuridão são condenados, os homens dificilmente sabem escolher os caminhos da luz. E se os poetas são seres iluminados, nem sempre seus versos conseguem clarear a escuridão onde se inscrevem..


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