domingo, 3 de julho de 1994

Ano 2000

          Pablo Neruda morreu no dia 23 de setembro de 1973, em meio aos desatinos do golpe militar que, doze dias antes, haviam dado morte a Salvador Allende.

          Cumprira, no dia 12 de julho, sessenta e nove anos. Seus últimos poemas, publicados postumamente pela Edi­torial Losada de Buenos Aires, embora expressem as novas cer­tezas e dúvidas que a aproximação da morte pode revelar, não abandonam velhos motivos.

          Emir Rodriguez Monegal, num trabalho publi­cado nas Actas do Simpósio Pablo Neruda, realizado na Univer­sidade Carolina do Sul, em 1974, ao relacionar as Memórias de Pablo Neruda com as histórias de sua vida, faz referên­cia a essa passagem do épico para o dramático ou a essas per­sonificações em que o poeta deixa de ser ele mesmo para se converter noutra pessoa, uma constante nos seus poemas.Assim, diz o crítico uruguaio, a assunção da voz dos índios construtores de Machu Pichu, o se situar entre os mineiros, os trabalhadores em greve, as vítimas da explo­ração, os que lutam para dar um basta às iniquidades sociais. Uma identificação do poeta com os pobres que o acompanhará até o fim de seus dias.

          Em 2000, um de seus oito livros póstumos, dois poemas são disso a prova. O primeiro tem por título “Os homens” e se inicia com o pronome de primeira pessoa. Um eu determinado, eu sou Ramón González Barbagelata, proveniente de qualquer lugar. Os topônimos se sucedem, antes que a apre­sentação se complete: sou o pobre diabo do pobre Terceiro Mundo. Aquele que chegou - o verbo no passado está anteci­pando o futuro - no ano 2000 com o fardo da pobreza de sem­pre: com o barraco de sempre, com a escola sem recursos de sempre, com os farrapos, a má sorte e os piores empregos de sempre; para quem é lícito se perguntar: com o ano 2000 que eu tenho que ver / com os três zeros que se ostentam / glori­osos / sobre meu próprio zero, sobre minha inexistência?

          Como resposta a um interlocutor é o poema que segue, intitulado, “Os outros homens”. Igualmente, se inicia com uma primeira pessoa que se rotula anarcopitalista furi­bundo”, disposta a tirar proveito do que se lhe ofereça: “Eu respiro à vontade / no jardim bancário deste século / que fi­nalmente é uma grande conta corrente / na qual por sorte sou credor.

          E, tão veraz como Ramón González Barbagelata no testemunho de sua miséria, este “anarcopitalista” ao se beneficiar, vê somente beleza no milênio que se inaugura: os três zeros nos resguardam de toda insurreição desnecessária.

          A perversa dicotomia das duas vozes, mostram, sem complacência, um Pablo Neruda vencido nas suas esperan­ças: o pobre do Terceiro Mundo a entrar no ano 2000 como sem­pre foi e proclamando o supérfluo da inauguração do milênio; e o rico perseverando, confiante, nos seus objetivos que prescindem de transformações para serem alcançados. Para ele, basta um novo dicionário para mudar o nome das coisas que po­derão continuar a serem as mesmas.

          Entre essas vozes que assumem o explorado e o explorador, a comovente expressão do poeta: Ai daquele cora­ção que esperou sua bandeira / e do homem entrelaçado pelo amor mais terno, / hoje não resta mais do que meu vago esque­leto [...].

          Após tantas lutas e a enorme esperança vã - igualdade na liberdade - do Chile de Salvador Allende, o so­nho eterno, o sonho necessário de que fala, em setembro de 1973, Jean Jacques Servan-Scheriber, para Pablo Neruda se tornou irrealizável. Porque nos últimos doze dias de sua vida a força desprovida de razão dos que decidiram reestruturar o país lhe fizeram ver abismos de injustiças, repressão, massa­cre, torturas inimaginadas.

          O primeiro verso de seu livro 2000 vatici­nara: Piedade para estes séculos e seus / sobreviventes.

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