Pablo Neruda morreu no dia
23 de setembro de 1973, em meio aos desatinos do golpe militar que, doze dias
antes, haviam dado morte a Salvador Allende.
Cumprira, no dia 12 de
julho, sessenta e nove anos. Seus últimos poemas, publicados postumamente pela
Editorial Losada de Buenos Aires, embora expressem as novas certezas e
dúvidas que a aproximação da morte pode revelar, não abandonam velhos motivos.
Emir Rodriguez Monegal, num
trabalho publicado nas Actas do Simpósio Pablo Neruda, realizado na Universidade
Carolina do Sul, em 1974, ao relacionar as Memórias de Pablo Neruda com as
histórias de sua vida, faz referência a essa passagem do épico para o dramático
ou a essas personificações em que o poeta deixa de ser ele mesmo para se
converter noutra pessoa, uma constante nos seus poemas.Assim, diz o crítico
uruguaio, a assunção da voz dos índios construtores de Machu Pichu, o se situar
entre os mineiros, os trabalhadores em greve, as vítimas da exploração, os que
lutam para dar um basta às iniquidades sociais. Uma identificação do poeta com
os pobres que o acompanhará até o fim de seus dias.
Em 2000, um de seus oito livros póstumos, dois poemas são disso a prova.
O primeiro tem por título “Os homens” e se inicia com o pronome de primeira
pessoa. Um eu determinado, eu sou Ramón González Barbagelata,
proveniente de qualquer lugar. Os topônimos se sucedem, antes que a apresentação
se complete: sou o pobre diabo do pobre
Terceiro Mundo. Aquele que chegou
- o verbo no passado está antecipando o futuro - no ano 2000 com o fardo da
pobreza de sempre: com o barraco de sempre, com a escola sem recursos de
sempre, com os farrapos, a má sorte e os piores empregos de sempre; para quem é
lícito se perguntar: com o ano 2000 que
eu tenho que ver / com os três zeros que
se ostentam / gloriosos / sobre meu próprio zero, sobre minha inexistência?
Como resposta a um
interlocutor é o poema que segue, intitulado, “Os outros homens”. Igualmente,
se inicia com uma primeira pessoa que se rotula anarcopitalista furibundo”, disposta a tirar proveito do que se lhe
ofereça: “Eu respiro à vontade / no jardim bancário deste século / que finalmente
é uma grande conta corrente / na qual por sorte sou credor.
E, tão veraz como Ramón
González Barbagelata no testemunho de sua miséria, este “anarcopitalista” ao se
beneficiar, vê somente beleza no milênio que se inaugura: os três zeros nos resguardam
de toda insurreição desnecessária.
A perversa dicotomia das
duas vozes, mostram, sem complacência, um Pablo Neruda vencido nas suas esperanças:
o pobre do Terceiro Mundo a entrar no ano 2000 como sempre foi e proclamando o
supérfluo da inauguração do milênio; e o rico perseverando, confiante, nos seus
objetivos que prescindem de transformações para serem alcançados. Para ele,
basta um novo dicionário para mudar o nome das coisas que poderão continuar a
serem as mesmas.
Entre essas vozes que
assumem o explorado e o explorador, a comovente expressão do poeta: Ai daquele coração que esperou sua bandeira
/ e do homem entrelaçado pelo amor mais terno, / hoje não resta mais do que meu
vago esqueleto [...].
Após tantas lutas e a enorme
esperança vã - igualdade na liberdade - do Chile de Salvador Allende, o sonho eterno, o sonho necessário
de que fala, em setembro de 1973, Jean Jacques Servan-Scheriber, para Pablo
Neruda se tornou irrealizável. Porque nos últimos doze dias de sua vida a força
desprovida de razão dos que decidiram reestruturar o país lhe fizeram ver
abismos de injustiças, repressão, massacre, torturas inimaginadas.
O primeiro verso de seu
livro 2000 vaticinara: Piedade para estes séculos e seus /
sobreviventes.
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