domingo, 24 de julho de 1994

O paraíso perdido

          Publicado em 1986, pela José Olympio Editora, para comemorar a passagem do 80º aniversário da expedição de Euclides da Cunha ao alto Purus, Um paraíso perdido é consti­tuído de ensaios e cartas que o autor de Os sertões escreveu sobre a Amazônia.
 
          Considerado o primeiro intérprete da geogra­fia, da história e da sociologia do Estado do Acre, Euclides da Cunha, nestes textos coletados e organizados pelo histori­ador Leandro Tocantins, mostra um Brasil que raros conhecem ao des­crever o luxuriante mundo da selva e ao constatar as relações antagônicas que reinam entre seus habitantes.
 
          Foi tanta a miséria e tamanhas as injustiças que presenciou, ao penetrar nesses territórios, onde, mais do que em nenhum outro, se impunha a lei do mais forte, que suas revelações representam, também, uma denúncia.

          No texto “Os caucheiros”, publicado, origi­nalmente, em A margem da História, Euclides da Cunha, enge­nheiro, observa, registra, analisa e se mostra, então, aquele escritor lírico, profético, acusador de que fala Leandro Tocantins no ensaio que abre Um paraíso perdido.
 
          Primeiro, ele situa, geograficamente, o es­paço em que se desenrola o drama: as terras onduladas da margem direita do Ucaiale para onde convergiam, depois de atravessar os Andes e os plainos amazônicos, aventureiros em busca da riqueza da mata.
 
          Nunca se armou tão imponente cenário a tão pequeninos atores, sintetiza Euclides da Cunha, anunciando as palavras com que irá definir os índios que habitam essas paragens e os que chegam para a destruição da flora e o ex­termínio das gentes: os caucheiros.
          Levam uma vida errante, sempre em busca da castiloa elástica que lhe fornece a borracha e que, extrema­mente frágil, no momento em que a golpeiam, definha e morre. E o extrator a derruba inteira no afã de aproveitá-la in­teira, processo rude que em pouco tempo esgota o cauchal. E, assim, se impõe um nomadismo que é responsável pela indiscri­minada escravidão e matança dos selvagens que habitavam essas matas.

          E, a isso, os caucheiros chamavam de con­quista, invariavelmente subordinada à velha tática de sempre: tiros e ataques extremamente rápidos. É incalculável o nú­mero de minúsculas batalhas travadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem armados suplantam tribos inteiras, sa­crificadas a um tempo pelas suas armas grosseiras e pela afoiteza no arremeterem com as descargas rolantes das carabi­nas.
 
          Evidentemente, a luta pela riqueza que se instaura nos recessos da mata não resulta em vitória para to­dos e um número infindo de homens trabalham solitários, du­rante anos a fio, no mais absoluto abandono para então morre­rem na miséria em que sempre viveram.

          Os que vencem, criam no meio da selva um pe­queno território que imita algo do mundo civilizado: um en­treposto comercial de qualquer cidade da costa com seu bal­cão e seus empregados atentos, um calendário marcando os dias certos do ano, jornais e até um fonógrafo.
 
          Dentre os espoliados, a inesquecível figura desse índio doente, disforme, mal parecendo um ser humano, tentando se expressar numa língua incompreensível e que, por fim, num tremendo esforço, levanta o braço para indicar dis­tâncias e pronuncia a palavra amigo.
 
          A insignificância desse homem, a pequenez de seu destino são a origem de um texto cujo significado, pro­fundamente lírico, é tão grande quanto a sua intenção acusa­tória: Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das safras, que tinham partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão absoluta. Das palavras caste­lhanas que aprendera restava-lhe aquela única; e o desventu­rado, murmurando-a, com um tocante gesto de saudade, fulmi­nava sem o saber - com um sarcasmo pugentíssimo - os desman­dados aventureiros que àquela hora prosseguiam na faina de­vastadora: abrindo a tiros de carabina e a golpes de machete novas veredas a seus itinerários revoltos e desvendando ou­tras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam dei­xado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígene sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumul­tuárias, de construtores de ruínas...

          A síntese que iniciara o artigo mostra-se, pois, perfeita. E, entre os pequenos atores - deformados pela febre, quase inumanos ou deformados pela falta de caráter que não os inibe de massacrar seus semelhantes - e a vastidão e a grandiosidade da floresta houve, ainda, lugar para previ­sões.
 
          Um paraíso perdido foi o título do livro que Euclides da Cunha planejara escrever sobre a Amazônia.

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