domingo, 4 de julho de 1993

A morte como punição


          Montevidéu tinha 82 anos de fundação e a governava um passivo defensor da Coroa espanhola.
          Nos campos, a grande massa campesina era chamada à ação pelos caudilhos locais. É o momento em que o gaúcho legendário vai se constituir uma força - inconsciente e instintiva - que traçará o caminho da Independência.
          No romance de Eduardo Acevedo Díaz esse gaúcho será Ismael, personagem-título.
          Além de encarnar toda a idiossincrasia daquele que, na época, era chamado de gaúcho malo, gaucho bravio, matrero; além da beleza e da juventude, Ismael faz parte do contingente que luta contra o espanhol.
          O vilão do romance é Jorge Almagro, espanhol de Aragão, feio, repelente, mau, fiel às tropas do rei.
          Ambos pretendem Felisa. Ismael, espontanea-mente atraído por ela, por ela é procurado. Jorge Almagro, mais interessado nas propriedades que Felisa irá herdar, por ela é sempre repudiado.
          E chega a hora em que eles se enfrentam. Ismael para se defender fere o adversário deixando-o quase sem vida. Deve fugir e passar a ter vida de matreiro, isto é, sempre escondido e em fuga.
          Recuperado dos ferimentos, Jorge Almagro, num ato de violência, mata Felisa, incapaz de se controlar diante de seu desprezo. E se torna alvo da vingança de Ismael.
          O encontro entre os dois acontece em meio a uma ação militar em que se defrontam tupamaros (os que já haviam nascido no Continente e se sentiam donos da terra) e os godos ( assim, pejorativamente, eram chamados os espanhóis), os usurpadores.
          Ismael, incorporado às tropas de Artigas, antes de mais nada, procura seu desafeto e o vislumbra no campo inimigo. Desprezando perigos, se lança em sua perseguição e o laça como a uma rês, arrastando-o pelo chão. Jorge Almagro procura se defender mas morre num sofrimento semelhante ao que dera à indefesa Felisa que, perseguida por ele, caíra do cavalo e presa do estribo era puxada pelo campo quando recebeu o golpe da boleadeira atirada com o fito de impedir a correria do animal.
          Quando, finalmente, Jorge Almagro consegue fazê-lo parar, ela tinha as roupas destroçadas, o rosto estava todo cheio de manchas de cor violeta, o crâneo afundado pelo golpe da boleadeira, os olhos cobertos de terra, semi-cerrados e fixos, o nariz quebrado pelos coices e o peito sem latidos.
          Preso ao laço de Ismael que numa desenfreada corrida cruza o campo de batalha, o corpo de Jorge Almagro, sacudido em infernal agonia, machucado nas pedras do terreno, feito uma bola sangrenta passou rolando sobre os despojos do combate e por fim já não era mais do que um monte repugnante de carnes e de ossos.

          Num tempo em que um fim único dominava os partidários da libertação do país e em que os dominadores se acreditavam impunes, Ismael e Jorge Almagro mataram em nome das próprias paixões: Almagro por querer impor sua injusta vontade; Ismael para desafogar o sofrimento que a morte de Felisa lhe causara.
          Felisa fora punida por não se submeter à prepotente vontade masculina; Almagro, pelo crime que se permitira cometer.
          Ambas as mortes se diluem entre as milhares de outras, igualmente violentas que então aconteciam nas lutas pela Independência do Uruguai.
          Mas, se a morte de Felisa, originada da covardia e da maldade a situa como vítima a lamentar, a morte de Jorge Almagro, embora semelhante, só enaltece aquele que a praticou.
          Ismael não fugiu aos códigos vigentes entre os gaúchos bravios ao matar o godo, o invasor, e, ainda, sem ter disso clara consciência, está, também, a ajudar o nascimento da pátria nova
          Ismael foi publicado em 1888 quando o Uruguai segundo o seu autor, mergulhado em profunda crise, precisava ter heróis.

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