domingo, 11 de julho de 1993

Eludir a morte 4

           Em 1975, exilado na Argentina, Eduardo Galeano publicava pela Sudamericana de Buenos Aires, La canción de nosotros.
 
 
Romance ou o que quer que seja, diz o autor. Mas, certamente, um documento sobre o que, então, acontecia no seu país que vivia nesses anos um período de repressão típico do Continente.
 
           Os 39 capítulos que o compõem são encabeçados pelo respectivo número e apenas no índice recebem os títulos que, intercalados, se repetem: “A cidade”,”O regresso”, “Andanças de Ganapán”, “A máquina”, “O Santo Ofício da Inquisição”. Como se fossem textos independentes para falar dessa cidade de Montevidéu aparentemente submissa à miséria e ao medo, da teimosa volta de um perseguido político, das atribulações de Ganapán para conseguir sobreviver, da tortura institucionalizada e daquela que também era vigente nas colônias da América.
 
           Os capítulos 12, 16, 19, 21, 23, 24, 30, 31 se agrupam sob o título “ A máquina”, isto é, a organização do terror que engloba perseguições, caçadas, prisão, tortura, assassinatos. Um mundo feito de delações, de atos desprezíveis e heróicos, de absurdas crueldades mas, ainda habitado por homens que acreditam em sentimentos e princípios.
 
           O capítulo 19 registra a degradação física de Fierro num sofrimento e numa luta pela conservação da lucidez e da dignidade que parecem verdadeiramente ficcionais. Um texto que não recua diante do horror de uma sessão de tortura. O recuo que existirá para dizer da morte.
 
           O capítulo 23 é relatado no tempo presente, o presente do personagem quando a dor já atingiu o limite do suportável físico e moral, levando a vítima a optar pelo suicídio.
 
           O narrador todo-poderoso, no entanto, se antepõe ao que irá acontecer e informa: Ainda não sabia que eles não o iam deixar escolher. Ainda não lhe tinham arrebentado o fígado, no fim de várias semanas de não poder lhe arrancar nem uma única palavra da boca. Ainda não o tinham jogado morto no mato, perto de um povoado qualquer. E não sabia e não iria saber nunca que em algum lugar havia uma carta para ele.
 
           Segue-se a transcrição da carta. Uma carta de mulher. Simples, coloquial de um lirismo que o saber que suas palavras amorosas jamais chegarão ao destinatário torna mais tocante. Sobretudo, porque já nas primeiras linhas do capítulo seguinte aparece o cadáver entre ramos de plantas espinhosas num terreno baldio.
 
           Por não delatar havia sido morto e jogado como lixo, sem direito à sepultura. Entre o momento em que desejou a morte para se livrar dos suplícios e não fraquejar entregando os companheiros e aquele em que seu cadáver foi encontrado pelo desconhecido que o enterra, medeia uma zona de sombras.
 
           Registrado fora o seu sofrimento: punição por se opor ao Sistema. Sobre sua morte imperou o silêncio.
 
           O nascimento e a morte não tem importância - ele diria - o que importa é o que está no meio e ele não podia permitir que no meio estivesse a traição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário