domingo, 3 de fevereiro de 1991

Os cocacolizados

            O general Omar Torrijos, dirigente do Panamá que ousou lutar para que o canal do Panamá passasse a ser dos panamenhos, morreu no dia 31 de julho de 1981, num acidente aéreo cujas causas não foram esclarecidas. Mi general Torrijos, um livro-testemunho sobre ele, recebeu, em 1887, o Prêmio Casa de Las Américas.
            Seu autor, José de Jesús Martinez, lecionava Filosofia na Universidade panamenha quando Omar Torrijos assumiu o poder em 1968. Resistente ao golpe militar do então tenente-coronel Torrijos, perdeu o seu lugar na Universidade e foi trabalhar em Honduras. Ao regressar, algum tempo depois, a seu país, foi reintegrado à cátedra, agora como professor de Mastemática, disciplina que fora estudar em Paris. Une-se, então, a um grupo de cinema experimental e, numa ocasião, foi com eles até a Base Militar do Rio Hato, filmar a chegada dos estudantes para uma jornada de trabalho.
            Insone, de madrugada, se levanta,  atento a um ruído desconhecido que se aproxima e percebe que se trata do canto de mil recrutas recém chegados à base. Um canto que expressava a indignação pela presença dos norte-americanos na zona do canal e um entusiasmo ímpar na luta para tornar possível o sonho de ver a bandeira panamenha em cada canto do país.
            O sentido do canto, os valores e o entusiasmo nele contidos, mostraram ao então professor universitário um caminho, se constituíram tábua de salvação para o naufrágio existencial em que se encontrava.
            E, aos quarenta e cinco anos,  se alista como recruta. No entanto, não dá baixa, logo depois, como havia previsto  mas continuará no exército. Como cabo e como sargento irá acompanhar o general Torrijos numa trajetória que busca, mais do que tudo, a construção do Panamá.
            Essa opção de José Jesús Martinez, sem dúvida, pouco comum, nem sempre será entendida pelos seus pares. Ao fazer uma crítica a um dos assessores do governo panamenho é chamado por ele de carregador de malas do general; ao dirigir o trânsito para dar passagem ao carro do dirigente panamenho, é visto por um professor universitário, casualmente no local, que não pode impedir a indignação ao ver, com os próprios olhos, a função exercida pelo colega.
            Aceitar “tal função” e outras que lhe serão confiadas, fazem de José  Jesús Martinez, um homem curioso num Continente habitado por preconceitos  e duramente separado em classes onde, com muita freqüência, é ser o trabalho considerado vergonhoso.
            O  autor de Mi general Torrijos é, verdadeiramente, um fac-totum do general. Ele atua onde a sua atuação é necessária sem se preocupar pelo status que possa ter o trabalho que realiza ou do status que o trabalho possa lhe oferecer. Preocupa-se pelos frutos que, cedo ou tarde, desse trabalho, possam advir e nisso está em uníssono com aquele a quem serve. Para ambos, existem, prioritariamente, metas muito claras a serem atingidas para fazer do Panamá um país.
            Mi general Torrijos trata de muitas coisas além do assunto primeiro, a figura do general. Construída a partir de gestos, frases, atitudes particularmente representativas do que  se imagina ser ou do que foi estipulado ser a imagem do latino-americano, essa figura que nos apresenta José  Jesús Martinez é a de um homem que tem olhos para o ser humano, que por ele é capaz de se comover e por quem guarda um profundo respeito. Em quaisquer circunstâncias. Mesmo naquelas em que tal respeito poderia parecer menos importante.
            Um exemplo disso, é ter pedido, certa vez, ao autor do livro que não o fizesse passar vergonha: é que José de Jesús Martinez havia rido numa visita à Universidade dirigida pelos Mórmons, no Havaí quando um deles havia dito que o dirigente religioso da seita falava com Deus em inglês. Para Omar Torrijos, segundo o autor do livro, mesmo esse tipo de convicção merecia respeito.
            Entre um fato e outro, o autor de Mi general Torrijos vai expondo o pensamento do general e o seu posicionamento diante do Tratado do Canal. Um pensamento que irá sendo construído a partir da experiência direta com a realidade do país. Daí não ter ficado “geometricamente sistematizado”,  inserido  nessa lógica fácil dos extremos do certo e do falso. Uma desvantagem teórica, como diz José  Jesús Martinez, que o capacitou, na prática, a penetrar, mais profundamente, no conhecimento de uma realidade  em que rios transbordam todos os anos,  matando crianças e que está muito longe de ser uma realidade cartesiana.
            E, diante da questão do Canal do Panamá, como diante de todas as que envolvem os países da América Latina, um sentimento definitivo: o ódio contra o imperialismo e contra aqueles que a ele se submetem passivamente, prazeirosamente. Aqueles que, no dizer de José  Jesús Martinez, tem os olhos brilhando quando chegam nos Estados Unidos. Os cocacolizados, como os chamava o general. Que, inclusive, se expressam num idioma híbrido que no livro está registrado neste exemplar diálogo: Darling, donde están los childrens? – Están em el swiming pool.
            Um diálogo, ou semelhante ou igual, que pode ser ouvido em muitos espaços da América Latina onde, certamente, menos fácil é se ouvir suas vozes verdadeiras. Até porque, freqüentemente,  quando elas se alçam, são muitos os interesses em fazê-las calar.
            E, embora os métodos sejam sobejamente conhecidos – bolsas de estudo, privilégios financeiros, auxílios tecnológicos, modelos culturais, apoio militar, eliminação física – são raros, no Continente, os que mensuram suas implicações. E a esses, acreditam os do norte do Rio  Bravo, é mister neutralizar.
            Omar Torrijos teve morte violenta.
            Alguns anos antes ouvira de um cacique indígena uma parábola: os homens devem partir, não aos empurrões, mas como os velhos troncos que o mar cobre e levanta e que a maré leva embora lentamente. Assim, diz José  Jesús Martinez, é que o general gostaria de ter partido. Não desfeito e carbonizado como o deixou o inimigo.

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