domingo, 17 de fevereiro de 1991

Que falem os vencidos

            América viva: 1492-1992, quinientos años después foi publicado há dois anos atrás. Transcorria o II Festival do Livro de Manágua e ali, na moldura de uma revolução excitante, agitada, tormentosa, dura e doce, comovente até a dor e até o júbilo se tratou de literatura  e de testemunho, da narrativa contemporânea, da mulher e da criação artística. E, entre texto e contexto, surgiu o momento de discutir as comemorações da chegada dos espanhóis na América.  Daí a idéia de reunir em livro, algumas páginas de Eduardo Galeano (parte de Nosotros décimos no, publicado pela Editora Siglo XXI, do México),Tomás Borge (tor-  tornadas conhecidas, em 1998, no Seminário organizado pelo Conselho Mundial dos Povos Indígenas, realizado em Manágua), Roberto Fernández Retamar (também, publicado em Manágua) e Gioconda Belli ( parte de seu romance, La mujer habitada).

            Nesse seu primeiro romance, Gioconda Belli, que dez anos antes havia recebido o prêmio de poesia da Casa de las Américas, narra o compromisso de homens e mulheres com a Revolução Sandinista .O texto, publicado em América Viva,  ao qual a compiladora da obra, Iosu Perales, deu o título de  “Acta de la Resistência” é o monólogo de Itzá,  indígena que, em forma de laranjeira, habita a casa e a alma de Lavinia, mulher de nosso tempo, revolucionária em busca  da emancipação total de seu país.

            Itzá nasceu quando os espanhóis já haviam chegado na América. Também ficou fascinada pela sua imagem quando, pela primeira vez a viu num espelho. Já era, então, mulher de Yarince, o cacique. Havia-lhe seguido os passos por amor e para lutar contra os espanhóis. Morreu quando, de seu grupo de resistência, já restavam poucos. Esvaiu-se em sangue nas margens do rio. Morta, foi levada para repousar na terra e esperar que os séculos passassem para  cumprir o desígnio dos deuses: tornar à vida sob forma de vegetal.

            O momento chegado, Itzá obedece: penetrei na árvore, no seu sistema sangüínio, a percorri como uma longa carícia de seiva e de vida, num abrir de pétalas, num estremecimento de folhas.

            A árvore, então,  voltou a nascer, habitada por sangue de mulher. E, Itzá torna a ver a luz no jardim de Lavinia, combatente sandinista. Olha para esses contornos de muros largos, de arbustos recém cortados, de flores que nascem em vasos, para essa mulher, Lavinia, que é jovem e alta, bela nos seus cabelos escuros e no seu o andar das mulheres da tribu.

            Presa nas suas raízes, percorrida pela seiva no trabalho de transformar as flores em frutos, Itzá espera o momento de se encontrar com Lavinia. E  lembra da vida que viveu: os dias de amor com o guerreiro, a luta para se livrar da indignidade da submissão, imposta pelos invasores espanhóis que dos índios fazem escravos e da terra conquistada, somente fonte de riquezas.

            Nesse recordar, Itzá sabe quem é e sabe quem são os seus: sabíamos medir o movimento dos astros, escrever sobre tiras de couro de gazelas, cultivávamos a terra, vivíamos em grandes assentamentos à beira dos grandes lagos, caçávamos, fiávamos, tínhamos escolas e festas sagradas. Dos outros, sabe, apenas, pelos atos que praticam: dizem mentiras, matam homens, prostituem mulheres, impõem um deus estranho e novos códigos de guerra, orientados pela hipocrisia e pelo engano.

            Mas, foram eles, os vencedores. Os que sempre puderam falar, os que sempre contaram a conquista e os que, agora, festejam os quinhentos anos de sua presença na América.

            No entanto, para que a América, para que o Continente viva, é urgente que se ouçam, também, as outras vozes. O ser-lhes permitido elevar-se para serem escutadas, irá significar, certamente, para usar a expressão de Roberto Fernández Retamar, despedir-se da pré-história. O que, talvez, não seja fácil, nem conveniente, ouvir para os que sempre dominaram, sempre usurparam.

            Os vencidos do Continente que o digam.

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