domingo, 10 de fevereiro de 1991

Balada no Continente

             Johny Sosa é um cantor de blues. Negro e desdentado, mora em Mosquitos, um amontoado de casas no interior do Continente. De manhã cedo, escuta rádio, a história de Lou Brakley, o gringo. Um dia, a voz de Melias Churi deixa de ir ao ar. Ausência tão inexplicável como a presença de caminhões do exército na entrada da cidade.

            Tanto quanto os demais moradores do povoado, Johny Sosa ficou sem entender as guerras simuladas travadas entre nove horas e meio dia que os soldados recém chegados travavam entre si, arrastando-se sobre as urtigas, colina acima. Tampouco entendeu (e, por isso lhe bastou a explicação de sua mulher, a loira Dina: Eles são doentes.) o porquê dos soldados espiarem através das janelas dos ranchos sem se preocuparem pelos canteiros das hortas que pisavam nessas investidas noturnas. E, nem se deu conta, também, que as pessoas começaram a desconversar, a se calar. Sem explicações, lhe ficou o ter sido interrompida a história de Lou Brakley, no programa radiofônico da cidade.

            Uma noite, no Chantecler, mal afamado estabelecimento noturno onde cantava, viu com os olhos semi-cerrados de não querer ver, como levavam preso Melias Churi, o locutor da rádio de Mosquitos. O único que pode  querer, então, foi estar longe, no seu rancho feito de barro.

            A sua volta, o povoado continuava se transformando. Os troncos das árvores na avenida, amanheceram pintados de branco; muitos moradores abandonavam, de madrugada a cidade; as portas da emissora de rádio foram clausuradas; aos poucos, os oficiais se apossavam das casas perto da praça e logo quiseram mudar o pensamento dos moradores de Mosquitos. Imutáveis, permaneceram, apenas, as agruras do inverno e o por do sol dos meses de verão.

            Na Mosquitos invadida, Johny Sosa foi envolvido na teia que lhe estenderam os forasteiros. Desaconselhados, o seu repertório de blues e o seu cantar no Chantecler. Recomendada, a sua conversão ao bolero que deveria ser cantado por alguém capaz de luzir um sorriso de belos dentes, ainda que postiços.

            Jamais, iria pensar Johny Sosa. No entanto, o desejo da loira Dina em mudar esse destino de pobreza ao qual se condenara ao escolher a vida com ele, faz com que ceda aos argumentos do padre e do coronel: tenta ser cantor de boleros, tenta se manter afastado do Chantecler e aceita a dentadura que o dentista do exército confecciona para ele.

            Mas a mulher, ao tentar afastá-lo dos blues, ao querer justificar as prisões decretadas pelos invasores, ele acaba por amar menos. E cada vez menos, leva a sério as palavras do padre e do coronel que pretendem fazer dele um representante de Mosquitos nos festivais de música.

            Personagem  de pequenos universos – a horta plantada perto do rancho, o espetáculo semanal na mísera casa noturna – e, dono apenas, de uma vida de negritude e de pobreza, Johny Sosa compreendeu que nem a mulher o desviaria de sua trilha, nem  “os sábios” fariam dele um bezerro de duas cabeças, desses que se expõem nas feiras.

            Um dia, ele se sobrepujou às verdades recém aprendidas. Deixou em lugar seguro – nas mãos de uma prostituta – a dentadura nova, enfrentou o homem da delação, ludibriou seus perseguidores e fugiu.
            Esta sua gloriosa história é contada em La balada de Johny Sosa (Montevideo, Ediciones de la Banda oriental, 1989), um dos melhores relatos  de Mario Delgado Aparain e o quarto que publicou. Antes dele haviam aparecido, entre 1982 e 1987, Causa de buena muerte, Estado de gracia, El dia Del cometa e, nessas histórias de seu país, (nasceu no Uruguai, em 1949),  ele expressa, em magníficos tipos e situações o que poderia ser realidade em muitos espaços do Continente se o seu estilo, sem antecedentes  na História da Narrativa uruguaia (diria o crítico  Wilfredo Penco) não o inscrevesse num território e numa época perfeitamente delineados:  o Uruguai da pequena cidade que se desenha em traços muito rápidos de eucaliptos e ranchos de barro e numa época torturada pela ditadura. Porque, parte da magia com que Mario Delgado Aparaín constrói o sua narrativa, é essa sua linguagem de preciosos achados para delinear a  sombra e a luz

Sombra, a figura do negro Johny Sosa, correndo pelos campos sob a o céu negro e sem estrelas. Luz, a que dele se irradia, homem íntegro,  nessa  recusa de entregar a alma a pretensas verdades alheias e que na corrida para a liberdade procura  apenas, o direito de ser ele mesmo: um pobre negro desdentado, cantador de blues. 

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