Tanto
quanto os demais moradores do povoado, Johny Sosa ficou sem entender as guerras
simuladas travadas entre nove horas e meio dia que os soldados recém chegados
travavam entre si, arrastando-se sobre as urtigas, colina acima. Tampouco
entendeu (e, por isso lhe bastou a explicação de sua mulher, a loira Dina: Eles são doentes.) o porquê dos soldados
espiarem através das janelas dos ranchos sem se preocuparem pelos canteiros das
hortas que pisavam nessas investidas noturnas. E, nem se deu conta, também, que
as pessoas começaram a desconversar, a se calar. Sem explicações, lhe ficou o
ter sido interrompida a história de Lou Brakley, no programa radiofônico da
cidade.
Uma
noite, no Chantecler, mal afamado estabelecimento noturno onde cantava, viu com
os olhos semi-cerrados de não querer ver, como levavam preso Melias Churi, o
locutor da rádio de Mosquitos. O único que pode
querer, então, foi estar longe, no seu rancho feito de barro.
A
sua volta, o povoado continuava se transformando. Os troncos das árvores na
avenida, amanheceram pintados de branco; muitos moradores abandonavam, de
madrugada a cidade; as portas da emissora de rádio foram clausuradas; aos
poucos, os oficiais se apossavam das casas perto da praça e logo quiseram mudar
o pensamento dos moradores de Mosquitos. Imutáveis, permaneceram, apenas, as
agruras do inverno e o por do sol dos
meses de verão.
Na
Mosquitos invadida, Johny Sosa foi envolvido na teia que lhe estenderam os
forasteiros. Desaconselhados, o seu repertório de blues e o seu cantar no
Chantecler. Recomendada, a sua conversão ao bolero que deveria ser cantado por
alguém capaz de luzir um sorriso de belos dentes, ainda que postiços.
Jamais, iria
pensar Johny Sosa. No entanto, o desejo da loira Dina em mudar esse destino de
pobreza ao qual se condenara ao escolher a vida com ele, faz com que ceda aos
argumentos do padre e do coronel: tenta ser cantor de boleros, tenta se manter
afastado do Chantecler e aceita a dentadura que o dentista do exército
confecciona para ele.
Mas
a mulher, ao tentar afastá-lo dos blues, ao querer justificar as prisões decretadas
pelos invasores, ele acaba por amar menos. E cada vez menos, leva a sério as
palavras do padre e do coronel que pretendem fazer dele um representante de
Mosquitos nos festivais de música.
Personagem de pequenos universos – a horta plantada perto
do rancho, o espetáculo semanal na mísera casa noturna – e, dono apenas, de uma
vida de negritude e de pobreza, Johny Sosa compreendeu que nem a mulher o
desviaria de sua trilha, nem “os sábios”
fariam dele um bezerro de duas cabeças, desses que se expõem nas feiras.
Um
dia, ele se sobrepujou às verdades recém aprendidas. Deixou em lugar seguro –
nas mãos de uma prostituta – a dentadura nova, enfrentou o homem da delação,
ludibriou seus perseguidores e fugiu.
Esta
sua gloriosa história é contada em La balada de Johny Sosa (Montevideo, Ediciones
de la Banda oriental, 1989), um dos melhores relatos de Mario Delgado Aparain e o quarto que
publicou. Antes dele haviam aparecido, entre 1982 e 1987, Causa de buena
muerte, Estado de gracia, El dia Del cometa e, nessas histórias de seu
país, (nasceu no Uruguai, em 1949), ele
expressa, em magníficos tipos e situações o que poderia ser realidade em muitos
espaços do Continente se o seu estilo, sem
antecedentes na História da Narrativa
uruguaia (diria o crítico Wilfredo Penco) não o inscrevesse num
território e numa época perfeitamente delineados: o Uruguai da pequena cidade que se desenha em
traços muito rápidos de eucaliptos e ranchos de barro e numa época torturada
pela ditadura. Porque, parte da magia com que Mario Delgado Aparaín constrói o
sua narrativa, é essa sua linguagem de preciosos achados para delinear a sombra e a luz
Sombra, a
figura do negro Johny Sosa, correndo pelos campos sob a o céu negro e sem
estrelas. Luz, a que dele se irradia, homem íntegro, nessa
recusa de entregar a alma a pretensas verdades alheias e que na corrida
para a liberdade procura apenas, o
direito de ser ele mesmo: um pobre negro desdentado, cantador de blues.
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