domingo, 29 de julho de 2007

Contra-ponto


            Dezoito anos se haviam passado desde a Semana de Arte Moderna quando, em 1940, Mario Quintana publicou seu primeiro livro, A Rua dos Cataventos. Como que um caminhar contra a corrente nos seus trinta e cinco sonetos, sem título, numerados por algarismos romanos. O oitavo deles, é dedicado a Dyonélio Machado que já  publicara , cinco anos antes, Os ratos e já fora  preso por delito de opinião, cumprindo parte da pena no Rio de Janeiro. Em 1938, é liberado, retorna a Porto Alegre, retoma  a clinica no Hospital São Pedro e suas atividades literárias e jornalísticas. Nesse ano, conforme consta na dedicatória de Mario Quintana a seus irmãos, A Rua dos Cataventos  estava pronto e, também, estabelecida a amizade entre o romancista e o poeta que, embora com pouco mais de  trinta anos se enovela,  na melancolia, nas lembranças, em efêmeros momentos mágicos da vida, num desejo de retorna à infância.

            Neste soneto VIII, em decassílabos e composição métrica tradicional, como em quase todos os demais, há o lastimar de uma ausência. A primeira estrofe, se inicia com o verbo recordar ( no presente e na primeira pessoa): um passado longínquo e ditoso em dias de luz mansa, de brinquedo novo. Momento que é interrompido, porém,  na segunda estrofe, pelo vento da desesperança. As palavras agora – cinzas, noite morta, galharia torta- anunciam a perda do irrecuperável: os brinquedos de criança. No primeiro terceto é, então, instituído o ritmo da vida adulta : o passar do tempo, a idade que avança. E, instaurada a presença de seus presumíveis ouvintes no aviso prudente de que não se iludam com sua aparência  de velho. Porque, como explicita no segundo terceto, pedindo a esses  ouvintes que não acreditem nele, expressa a vontade de, novamente, ter a posse de seus brinquedos por não passar de um menino Que envelheceu, um dia, de repente!...

            Tânia Franco Carvalhal no breve estudo, “Quintana, entre o sonhado e o vivido”, publicado no volume seis da coleção Autores Gaúchos que o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul lhe dedica, menciona esta visão de mundo do poeta que recria a infância a cada revês da vida.

            Porém,  o seu vago País de Trebizonda,  a voz que ouvira  em pequenino, o som das valsas antigas e dos velhos ritornelos, a pequena rua em que vivera, a  estrela que apareceu no céu azul da infância,  tanto quanto as expressões luminosas – As estrelinhas cantam como grilos, Num claro riso as tabuletas riram, O dia abriu seu pára-sol bordado, Triste encanto das tardes borralheiras - serão  o contra-ponto das tristezas que ele aprisiona nos seus poemas de quatorze versos. Como, igualmente, prende o mundo mágico em que os sapatos velhos florescem ou sonham que são barcos encalhados / Sobre a margem tranqüila de um açude. O mundo  em que os ventos falam e a torre da igreja fica a cismar; em que em que emerge a alegre e colorida  realidade dos lindos pregões da madrugada, em que  Lua, aparece ao meio-dia e à tarde, os belos crepúsculos da cidade. Em que o céu é azul, em  que há  verde ramaria, e burricos a pastar na praça. Um mundo em que  poeta  faz versos ainda que seja só para disfarçar.

domingo, 22 de julho de 2007

Guaxo


       
    
Dirigido por Pedro Shimose,  O diccionario de autores iberoamericanos, após mencionar as datas de nascimento e morte de Haroldo Conti, acrescenta  uma informação pouco usual: foi um dos primeiros desaparecidos do governo argentino surgido a partir de março de 1976. Em junho do ano anterior,  publicara seu livro de contos La balada del álamo Carolina. À  semelhança de suas obras anteriores, Sudeste (1962), Todos los veranos ( 1964) e o inigualável  Alrededor de la jaula (1967), nele  se movem personagens  na simplicidade de seus dias e de seus gestos repetidos,  se desenham nesgas de paisagem,  amores, loucos projetos, crenças que acompanham a ilusão dos outros. E, raro pelo seu tema e pela beleza de sua expressão, o conto que dá nome ao livro. Ainda que em prosa, o termo balada (composição poética que refere um acontecimento completo [...] e que se reveste de um tom sentimental e melancólico) define à perfeição o relato que faz Haroldo Conti da vida de uma árvore:  este choupo nasceu aqui mesmo, cresceu sozinho, irrompendo da terra entre o  capim duro, como se fosse mais um, exposto aos ventos e ao sol e aos bichos.  A partir daí, o narrador passa a ser aquele que tudo sabe e pode contar o que pensa  o choupo na trajetória de sua lenta vida: o dia em que percebeu que ultrapassava o capim, o outro em que o sol chegando mais forte,  o intumesceu por dentro, tornando-o mais rijo e com  uma grande atração para subir em direção ao céu. Dono do tempo, o narrador o acompanha nesse caminho:  ver que o capim ficava lá embaixo, a cerca e, mais adiante,  a estrada;  perceber que lhe nasciam os ramos e que seu crescimento era mais vagaroso; divisar, dois anos depois, a primeira casa de um homem e atrás dela, relampejando, a estrada de ferro; outros anos passados, bem mais alto, vislumbrar o teto da casa e a chaminé, lançando, ao entardecer, um penacho de fumo. Também, no seu sentir: as  transformações marcadas pela primavera quando renascem as folhas perdidas;  se dar conta que  mover-se era natural em  grande parte de quanto vive e sofrer a dor de sua imobilidade só interrompida pelo   vento. Imobilidade que ele busca ao saber o que é se converter numa casa  ao  abrigar o ninho feito de pequenos ramos cortados e enovelados com paciência;   descobrir, um dia de manhã, com seus olhos verdes mais altos que aí perto havia um bosque, muitas árvores juntas, alta e rumorejante irmandade  e se perguntar  por que não estava também ali? Por que tinha nascido solitário? Das respostas, vindas  pelas raízes, o narrador não soube dizer.  Sim que o  choupo foi feliz com o vento a lhe agitar as folhas, com a chuva  a lhe escurecer os galhos, com a espera do verão.

            Foi no verão, o sol muito alto, sua sombra muito grande quando viu  o homem  se aproximar dele. Desceu do cavalo, tirou o chapéu empoeirado, olhou para cima, aspirou o odor das suas folhas e com a manga da camisa secou o suor da testa. Sentou-se perto dele, se recostou no seu tronco e adormeceu.

 

domingo, 15 de julho de 2007

Um cisne em águas turvas


        
   
O título Da nascente à Foz do Amazonas: uma viagem fantástica,   certamente, é instigante. E, muito mais, ao ser lida, nas orelhas do livro,  a apreciação da Revista Geomundo (uma façanha que excita a imaginação de qualquer pessoa),  do Jornal Luso-Americano  (Português de Vizeu na maior aventura de sempre) e, ímpar, a de Jacques Costeau: Alfredo Nascimento, valendo-se apenas dos seus próprios meios,  revelou uma coragem sem limites. Não tenho conhecimento que alguém tenha realizado um feito igual ao seu. Ele merece o meu respeito e admiração.  Não apenas, porém, a coragem de Alfredo Nascimento se mostra imensa  e surpreendente neste itinerário de sete mil, cento e quarenta e nove quilômetros, pleno de surpresas e de percalços que o rio, tanto quanto suas margens, foi-lhe oferecendo a partir da nascente, um pequeno fio de água em Vilcanota, no Peru, até a sua foz em Belém do Pará. Porque, se conseguiu sobreviver ao ritmo alucinante das corredeiras e redemoinhos, a percursos feitos em ônibus com excesso de lotação e motorista nem sempre sóbrio, ao toque maléfico e venenoso  da “Lagarta de fogo”, decisivamente elogiável é  o olhar que pousa na paisagem para vê-la e o interesse que sente pelas pessoas que a habitam. São pequenos rios a convergirem de todos os lados, um pequeno vulcão em atividade, os vales andinos cultivados, as inumeráveis espécies da fauna e da flora; são os admiráveis  tipos humanos , seus costumes, sua contribuição cultural  ao longo dos séculos. Um mundo descrito  e fotografado por Alfredo Nascimento cuja sensibilidade se revela na escolha de um amplo panorama ou de um pequeno detalhe que deseja mostrar : o rio ora plácido, ora verdadeiro turbilhão;  as silhuetas das montanhas ainda intocadas ou com as marcas do homem nas plantações em nível; os emocionantes monumentos indígenas ou o testemunho da conquista espanhola nos templos e nos imponentes casarões. Belas imagens, valorizadas por um inventiva diagramação que faz do livro de Alfredo Nascimento, juntamente com o seu texto, nascer o desejo  de se adentrar nesse Continente conhecido por tão poucos. O que, no entanto, não o defende das aves de rapina, sempre dispostas a auferir tremendos lucros, ainda que em detrimento de quem quer que seja, ou do que quer que seja e que Alfredo Nascimento não elude na breve ironia sobre a          presença de uma ONG com sede na Europa cujo objetivo é integrar pacifica e suavemente os Matsigengas na sociedade moderna: não deixa de ser sintomático que isso coincida com a descoberta de grandes jazidas de petróleo e de gás natural naquela região. Ou, no testemunho cruel quando   relata a aproximação, num  cais  do Amazonas,  de um barco que parecia feito para um conto de fadas. Todo branco,com o nome de  Cisne,  flutuava sem fazer o menor ruído. Seus quatro tripulantes, entre os quais um veterinário- cuja tarefa consistia em manter os animais sob narcóticos -  nele haviam embarcado “uma milionária carga de animais silvestres, que pretendiam contrabandear para a Europa, via aérea. Para conseguir os animais, orientavam os nativos no trabalho de captura; depois, obtinham  as guias para transporte por via aérea em nome de zoológicos,  realizando um comércio submisso a grupos europeus ou norte-americanos. De acordo com as palavras do veterinário, empolgado com os lucros que, por sua vez lhe  cabiam, aquela era a terceira viagem do Cisne que, até então, nunca havia sido interceptado por qualquer autoridade. Corria o ano de 1999.

 

domingo, 8 de julho de 2007

Nascer outra vez


         Autobiografia parcial e diário poético outonal de Pablo Neruda, assim Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmovil, Losada, 1966) define Memorial de Isla Negra. Publicado no ano de 1964, em 12 de julho, dia do aniversário do Poeta, os poemas que o compõem buscam recriar, em verso, a sua vida. Mas, como ele próprio confessa na conferência que fez na Biblioteca Nacional do Chile, nesse mesmo ano da publicação do livro, ainda que exista a conduzi-lo um fio condutor biográfico, não procurou mais do que expressar alegria ou tristeza num relato que se dispersa e volta a se unir e que submete aos acontecimentos vividos e à natureza que o continua chamando com todas as suas incontáveis vozes. Agrupados em cinco partes, expressam o vazio deixado pela morte de sua mãe, o carinho recebido da tia que o criou e a quem se recusa a chamar de madrasta, a figura adusta do pai, suas descobertas de menino, a revelação da poesia e do mundo com o que tem de injusto, seus amores. Busca de suas raízes, do tempo que passou, registro das emoções sentidas e das vivências pelo mundo afora. À quarta parte pertence o poema “O que nasce comigo”, enumeração de motivos de seus versos, um verdadeiro entranhar-se nas coisas mais comezinhas  da natureza. São três estrofes e a primeira, a mais extensa, começa com o verbo canto a introduzir essa relação do que acontece ao seu redor e que no preciso momento, ele registra: o trabalho do fermento no queijo e no vinagre, o som do leite, caindo em brancura, o esterco recém-formado, o vôo das varejeiras, o besouro e seu alimento, o líquen e suas germinações silenciosas. Canto ao capim que nasce comigo diz num se igualar à natureza em algo muito simples e que ele irá repetir ao dizer que nasce com tudo o que está nascendo e unido ao crescimento, ao que brota, ao que se propaga: em estame, em tigre, em geléias.

            A segunda estrofe se inicia com o pronome eu, afirmando pertencer à fecundação e nos versos seguintes se delineia com adjetivos elogiosos (sou jovem, sou puro) e, em acorde, com elementos da natureza (a água, o ar,) e com a soberania do tempo, com a cor da noite. Nos três últimos versos da estrofe, torna a se definir como um ser que somente ficará estático se for tão mineral que não veja, nem escute, nem participe do que nasça e cresça.

            A terceira estrofe, feita de sete pequenos versos, é explicação de uma escolha do Poeta: afirma sua visão de mundo no desejo de aprender aos poucos, folha por folha, pequenezes de um universo maior, a selva, e daí extrapolar para um desusado aprender: ser raiz, barro profundo, terra calada, noite cristalina” e, ainda, pouco a pouco, a selva inteira.

            Algo dessa história que lhe contava Miguel Hernández em Madrid: havia sido pastor de cabras e se impressionava ao pôr os ouvidos sobre o ventre das cabras que dormiam pois assim escutava o ruído do leite que chegava aos úberes. Algo, também, talvez, das últimas linhas de La tentation de Saint Antoine, de Gustave Flaubert, que impressionou a tantos escritores: Tenho vontade de [...] me dividir por tudo, estar em tudo, me emanar com os odores, desenvolver-me como as plantas, deslizar como a água, vibrar como o som, brilhar como a luz, aproximar-me de todas as formas, penetrar em cada átomo, descer até o fundo da matéria – ser matéria!.

            Breves detalhes – encontro de afinidades, estímulo criador – que entrelaçam o sentir do Poeta à reminiscências, cujas pegadas se mostram sutis o suficiente para apenas serem percebidas e não privam seus  versos da beleza e do lirismo que eles sempre soem ter.

 

domingo, 1 de julho de 2007

O Poeta perguntador: El hondero entusiata




            Em 1933, com uma explicação de Pablo Neruda sobre esses versos, escritos dez anos antes, é publicado, pela Empresa Letras de Santiago El hondero entusiasta: expressão de uma juventude ardente e excessiva que se constituem um documento válido por aqueles que se interessam por sua poesia, ele diz .Quarenta anos mais tarde, no seu livro de memórias Confieso que he vivido, irá se referir à essa noite em que, antes de dormir, abriu as janelas de seu quarto em Temuco. O céu com todas as estrelas brilhando o deslumbrou e, de maneira delirante, como se recebesse um ditado, escreveu um poema. No dia seguinte, já em Santiago, o mostrou a seu amigo Alirio Oyarzún que, admirado, lhe perguntou se não fora influenciado por Carlos Sabat Erscaty. Pablo Neruda negou, mas, intrigado, escreveu ao poeta uruguaio, enviando-lhe o poema e a resposta não tardou: poucas vezes li um poema tão perfeito, tão magnífico, mas tenho que dizer-lhe, sim, há algo de Sabat Erscaty nos seus versos.
            No total são doze poemas, deveras grandiloqüentes com seus símiles, adjetivos inesperados, desejos de infinito, imagens que se perdem na distância, lirismo exacerbado e sombrio, antropomorfismo, pleonasmo, advérbios de modo, exaltação do eu e do próprio sentimento. Tons e recursos que não serão muito diferentes dos poemas, nos quais se insere, dominante, a presença feminina. Ou, apenas delineada: olhos enlutados, mariposa sangrenta, porém, possuidora das marés; ou, feita de espumas débeis e ligeiras, mas que não lhe são de valia porque no seu cansaço todos as folhas caem, morrem ./ Caem, morrem todos os pássaros. Caem, morrem as vidas; ou, repudiada pelo Poeta quando implora que se afaste porque sua alma deve estar sozinha. Evanescente, no poema cinco, iniciado pela palavra amiga em que pede e reitera que não morra, enumerando as próprias qualidades (sou eu o que nos lábios guarda sabor de uva, o que cortou jacintos para teu leito, e rosas), imprescindível na sua ânsia de entrega.

            Tinha o Poeta dezenove anos e, aliada às tristezas e desalentos da idade, as urgências de Eros, eludindo inquirições que se fazem, então, bem poucas. No primeiro poema, por que não há de ser ele a ultrapassar o limite da luz e da sombra? Nos demais (no quarto, no oitavo, no décimo), a pergunta é dirigida à mulher: se a sua presença é sentida por ela em todos os silêncios e todas as palavras?. E, dispondo-se a ser depositário de tudo o que ela sente pertencer-lhe e por ela ser possuído, ampliando esse desejo na ânsia de não querer limite, se alçar, pretender o tangível, o duradouro. Então se pergunta: quem irá romper esta vibração de minhas asas? No décimo poema, fala à mulher como  escrava minha, aceita que esteja dentro dele: longe, fugindo como um coro de névoas perseguidas. E indaga: perto de mim, mas onde?

            Ainda que um ser desconhecido cuja posse perseguia, para a sua juventude a mulher era a quimera alcançada, o caminho desejado, o porto atingido, o entrelaçamento inalterável, o desígnio fatal: amor e desamor. De certezas, apenas as emoções que a juventude lhe jogava à flor da pele.