domingo, 7 de janeiro de 2007

Digressões


            Ele se diz um medalhão celebrado em todas as cidades aonde vai, autor de romances ruins que passaram por bons. E a única história que valia a pena, ele acredita que não a merece contar. No entanto, o faz para um interlocutor presente nas expressões que a ele dirige e que permeiam o relato. É a história de Janéti, uma história que não tem cabimento de tão linda, de tão extraordinária. Janéti, que recusou o seu destino de criança, dada para os outros, tanto quanto esse mesmo destino que os pais decidiam dar aos filhos que vieram depois. Consegue mantê-los reunidos (ou assim imagina e deseja) ao se atribuir a missão de preservar uma família que não queria existir. Ela é pobre e negra, registrada como Janéti, uma pequena vergonha para ela, porque é português mal escrito e mantém laços com os irmãos que iam sendo espalhados pela geografia, pela singela pobreza conhecida. Quando os pais decidiram ir embora para Porto Alegre, para um mundo melhor, dos sete filhos restavam, ela e a menorzinha ainda nenê. Na véspera, some de casa e, no entender dos pais, passava a fazer parte do passado. Aparece, porém, na parada do ônibus, onde eles já estavam , com os cinco irmãos de mãos dadas: Chegam em silêncio, nada dizem e nada se lhes pergunta. Sobem no ônibus. Assim termina o capítulo “Um”, de Quatro negros de Luis Augusto Fischer. 
            Seu Sinhô aparece no capítulo “Dois”. É o segundo negro. Vive na região de Caçapava e é lá que o narrador o irá conhecer: deveria ter uns sessenta ou sessenta e cinco anos, o rosto magro, o bigode fino e branco, as mãos imensas e se surpreende – vivendo no meio de latifúndios – com os dados do IBGE, ouvidos no rádio de que tem um hectare e meio para cada brasileiro. No capítulo “Três”, é contada a trajetória de Airton (o terceiro negro), irmão mais velho de Janéti e que saiu de casa aos dezessete anos. Virou funcionário de uma escola de samba onde foi apresentado ao escritor que vê nele, não apenas a criança renegada pelos pais, e sim alguém incapaz de esconder, especialmente nos olhos, uma tristeza descomunal, uma tristeza ancestral, uma tristeza sem cura. A história de Rosa, irmã caçula de Janéti, é contada no capítulo “Quatro”. É a quarta negra, a única dos sete irmãos que não foi dada pelos pais, porém entregue, à revelia deles, por Janéti, a uma colega de trabalho, dona Nair que estava bem de vida e, na menina, encontrou a filha que o seu destino de solteirona lhe havia negado.

            Quatro parcas vidas com seus breves momentos de felicidade, irrompendo num cotidiano de trabalho e pobreza que o narrador, na convicção de que é o condutor da história, relata escolhendo o cenário, explicando opções narrativas ou a verdade de um personagem, experimentando enredos, demorando-se em digressões.

             Digressões que se disseminam pelo texto. Como considerações pretensiosas do narrador ao explicar a razão de não mais querer ir a Canela – a cidade não possui livraria – e ao mencionar, talvez no intuito de mostrar erudição, conceitos de escritores. Ou, como testemunho de realidades que se lhe deparam quando vai para o interior do Rio Grande do Sul. Descendente de imigrantes, o que ele considerava campo era um espaço não muito distante da cidade, ocupado por canteiros, bretes, cercas, pastos, chiqueiro, galinheiro, árvores. Em Caçapava, ele conhece a imensidão do campo: maravilhoso, bruto, telúrico, primitivo universo, recortado por grandes latifúndios e onde nas partes dobradas em cerros e penhascos, sem valor comercial, inscrevem-se pequenas fazendas de famílias pobres, donos de umas poucas cabeças de gado. Não tiravam leite, não tinham horta, nem criavam porcos ou galinhas, embora não tivessem muito o quê comer. Assim, os pais de Janéti. Sem condições para alimentar os filhos que iam chegando, mal nasciam iam sendo dados, passando a ser, na família, que os acolhia aquela figura agregada da tradição senhorial brasileira que se desse sorte encontraria casa, comida e carinho, mas que se desse azar viraria um saco de pancada e trabalharia diuturnamente. Costume aceito na sua crueldade tanto quanto a caçada de tatu e a marcação do gado e o pealo de cucharra nas quais se detém o narrador. Momentos que registram um Rio Grande do Sul profundo e fazem de Quatro negros não apenas um relato de sofridos e pequenos destinos mas, aquele que, no testemunho e na ficção, também se quer documento.

 

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