domingo, 21 de janeiro de 2007

A sereia


            No ano de 1970, em sexta edição, ilustrada por Poty, era publicado O Coronel e o Lobisomem pela José Olímpio cujo personagem, Ponciano de Azeredo Furtado é natural da Praça de Campos dos Goitacazes, tanto quanto seu criador. Nesse segundo romance, escrito vinte e cinco anos depois de Olha para o céu, Frederico,  José Cândido de Carvalho concede voz a um dos personagens mais ricos da Literatura Brasileira para que registre a sua aventurosa vida nas muitas terras -  gado do mais gordo, pasto do mais fino -  abundantes em cobras, onças e assombrações que herdou do avô; e suas prazenteiras estadas na Rua da Jaca , no Hotel das Famílias e no Hotel dos Estrangeiros em Campos de Goitacazes. Numa linguagem de inigualável expressividade, Ponciano de Azeredo Furtado se revela apaixonante nas suas bazófias, zombarias, embustes, velhacarias, invencionices; comovente nos rompantes de pena por um ou outro desvalido com o qual se depara e nos seus desastrados enleios amorosos. Devoto de São Jorge, Santo Antonio e São José, nos seus quase dois metros de altura, barba vermelha, cabelo de fogo e voz grossa, ele confessa ser maluco por perna de moça e ser o trabalho que mais aprecia o andar na poeira de um bom rabo de saia. Incomodado amarra a cara, torce a barba, mede o assoalho em demonstração de zanga, dá sopapos na mesa, fala alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração” porém, afirma que é mimoso no trato, de palavra educada. E, por ter fama de ladrão de moça solteira e ser por demais prudente nas lides amorosas é que se lhe escapam Branca dos Anjos e dona Esmeraldina. O par de tranças e outras belezas de Branca dos Anjos o levaram em trenzinho de ferro e lombo de canoa até à pequena cidade onde ela morava e de onde o pai, sabendo de sua chegada de conquistador, a levou embora para o fundo do sertão restinguento.

            De Esmeraldina, com suas covinhas no rosto, seus olhos d’água, sua mão de bordado, sua boca de flor, seu pezinho de palma, branca, cabelo em formato de labareda, bonita de cegar, e mulher de seu amigo (e depois inimigo) Nogueira, ele se tornou cativo. Acreditando no seu bem querer – que estava cada vez mais enfeitiçada, cada vez mais vencida – garantiu os empréstimos de seu marido no banco sem perceber que ela não fora domada pela sua lábia e sim ele o enganado por palavras que julgou lhe fossem propícias. Ainda que a tivesse surpreendido, voltando dos escondidos do jardim, em companhia de um outro, toda desajeitada, arrumando o cabelo como saída de um abraço, persistiu no seu trato cerimonioso. E quando a sós com ela se ateve à palestrinha mimosa de homem de salão e até resistiu ao desejo, por achar que não combinava num ambiente de fina educação, de contar o caso da sereia. A sereia que o chamou pelo nome, numa noite de luar quando saiu em pós de uma capivara e sem dar por isso se achou na beira do mar alumiado de ponta a ponta. Apeou, mal grado da inquietação de seu cavalo. Seu nome vindo de dentro d’água, na água se atirou; seu nome vinha da terra e para a  terra quis voltar, quando já estava preso no fundo da onda e começou a afundar na água morna. Algo de escamoso lhe roçou a barba e lhe tirou as forças não o deixando pensar, nem escutar o mar ou o vento. Então, reagiu e, juntando a brabeza inteira dos Azeredos e dos Furtados, avançou os dedos pelas escamas até ancorar numa curva desprevenida. Espantado, escutou o canto mimoso e, levantando o cativo da água, apareceu o rosto de boniteza, cabelo de ouro pingando água e boca cheirosa. Precavido, foi respeitoso no trato, elogiou o seu canto e, carinhoso, a levou para o seco e a aninhou no seu colo onde ela cantou o canto das maiores feitiçarias. Para não se submeter a seu canto e encantos, recusou, com resposta forrada do mais fino veludo o casamento proposto por ela, inventando compromisso com mulata teúda e manteúda. Desgostosa, a sereia, muito triste, voltou para as ondas do mar. Ele ainda a quis reter, segurando o seu cabelo mas ela escapou e nas suas mãos ficou “um cacho de cabelo de ouro que ele ofereceu, como um delicado mimo, ao amigo com o qual dividia as manhãs da caçada de capivara. Então, abandonando os ermos, foi descansar no Hotel das Famílias.

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