domingo, 14 de janeiro de 2007

Mandrágora


            Em 1986, na entrevista a Ciro Bianchi Ross, em Havana, quando do lançamento em Cuba de Lope de Aguire, Príncipe de la Libertad, Miguel Otero Silva disse ser esse romance a sua obra de maior qualidade. Tardou cinco anos em escrevê-la e consultou cento e oitenta livros sobre Lope de Aguirre, personagem controverso, acusado invariavelmente de traidor e de assassino, mas tido por ele como uma figura que anuncia o destino dos libertadores e que está no cerne do movimento da liberdade americana. Lope de Aguirre, que imbuído dos conselhos do confessor da família (vai para as Índias lutar contra o paganismo), de seu padrinho de batismo, dono de moinhos de trigo (vai para as Índias em cujos mares as pérolas têm o tamanho de uma noz e as montanhas, esmeraldas do tamanho de maçãs), do velho tio, leitor de livros de cavalaria (vai para as Índias onde habitam as sereias e as amazonas, onde a fumaça de folhas oferece aparições e cactos destilam um vinho transparente e embriagador) atravessa o Atlântico, visando glória e riquezas. Em Cartagena, onde se alistou como soldado com o fito de engrandecer os domínios da Espanha, não combateu, porém, executando ordens, profanou sepulturas indígenas para roubar objetos de ouro que eram enterrados com os mortos. Depois, foram humilhações e sofrimentos que o levam, desiludido, a escrever uma carta a Felipe II da Espanha, condenando a monarquia como forma de governo. 

Editado pela Seix Barral de Barcelona, em 1979, Lope de Aguirre, Príncipe de la Libertad, se divide em três partes: a primeira, trata de Lope de Aguirre como soldado; a segunda, como traidor; e a terceira como peregrino. Um destino, iniciado num povoado espanhol, onde tem por ofício cuidar de cavalos e onde se nutre de amor pela liberdade e que, serpenteando por Sevilha, Sanlúcar de Barromeda, Ilhas Canárias, Cartagena, Cuzco, Potosi, Rio Amazonas, Ilha Margarita, se cumpre quando morre pelos tiros de arcabuz dos que eram fiéis a Felipe II. Inglório fim de uma vida de muitas lutas, na qual se emaranharam façanhas inauditas, injustiças, maldades, assassinatos a se alternar com o gozo, ainda que efêmero do mando, com a ânsia de vitórias. Quando lhe foi dado conduzir, determinar ações, para formar um grande exército e liberar o Peru e o Chile do poder espanhol, começou a se espalhar, entre os soldados, que ele carregava dentro de si um pequeno demônio. Tinha a forma de uma nuvenzinha que ninguém podia ver E, assim, surpreendia as vozes de traição e, em troca de sua alma, o aconselhava e alertava dos perigos que o cercavam. Um pacto que Lope de Aguirre firmou com o sangue de um de seus dedos, considerando ter feito um bom negócio, pois vendeu uma alma cujo signo fatal não era outro senão o inferno. Mandrágora, assim era o seu nome, lhe aponta traidores e, ao perceber que está dominado pelo ódio, dança e sapateia na sua alma porque embora saiba que ela está perdida e sem remissão, lhe agrada constatar como Lope de Aguirre acumula pecados mortais. E continua a predizer episódios sangrentos e terríveis e aconselhar maior rapidez nas ações para fazer frente aos que pretendem sua morte e eles não são poupados. Esta presença de Mandrágora é referida por Lope de Aguirre quando relata – são várias as vozes do romance – suas aventuras no Continente. Uma presença que lhe parece natural, ainda que se trate de um demônio que, segundo os Livros Sagrados, é passível de estar em toda parte. Mandrágora, diz, é o seu demônio familiar, seu dedicado diabo familiar, seu bom Mandrágora que o obedece como um servo e o consola, repetindo o que escrevia São Jerônimo: Deus, na sua infinita misericórdia, irá perdoar todos os que foram condenados ao inferno, inclusive, Satanás e seus anjos caídos. Também aquele que o fará saber que o Maligno jamais teve essa figura com chifres, como é representado por pintores, mas é uma substância invisível, entrincheirada na alma dos homens onde trava suas batalhas com Deus. Embora Lope de Aguirre lhe siga os conselhos, em dado momento, admite que, talvez, não seja a sua voz que ele escuta e sim a do seu próprio coração, fantasiado de demônio familiar. Atraiçoa e mata antes de receber conselhos de Mandrágora e quando ele desaparece, ele atraiçoa e mata, movido pela ambição e pelo ódio. Como qualquer conquistador chegado no Continente.

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