domingo, 31 de dezembro de 2006

Fixar o efêmero


            A capa e a contra-capa são de um azul que esmaece e nele apenas o nome da autora e o título da obra. Publicado neste 2006, Azuis:poemas é o segundo livro de Sigrid Renaux e aparece vinte e  sete anos depois de sua estréia com Do mar e de outras coisas. Ao todo, são cento e cinqüenta e oito poemas que expressam a emoção diante dos lampejos de luz e das nuanças onde reina o azul a marcar a terra com suas ilhas e suas dunas, as águas do mar e da lagoa, um pinheiro, um barco; a definir a noite, o céu, a brisa, o sol da manhã, o orvalho. O azul onde se insinua o verde das folhas e do mar, o verde-ouro das árvores, o amarelo dos marfins, o rosa das flores da paineira, o branco das ondas. É o olhar, atento, que, também, surpreende o sol entre as agulhas do pinheiro, as folhas do plátano, os ciprestes a cinzelar seus verdes, o perpassar do outono nas folhas do caquizeiro. Que vislumbra o olhar do sabiá preso à uma chuva de ouro / soprada pelo vento, o ciscar de gravetos do joão-de-barro, os pardais pousados sobre os fios de luz, a imobilidade de uma garça. Pássaros que, muitas vezes, são presença num canto que paira luminoso / lá do lado do sol, que num jardim adormecido / irrompe / incontido, nas suas melodias que impregnam a noite / com gotas de madrugada.


            Um mundo revelado na singeleza de mistérios: hortênsias que se entreolham, tuias a guardarem o sol das dálias e o sabor dos araçás. E a esse mundo, entrelaçando-se, a voz poética a se desvelar nas reminiscências que irão se constituir o itinerário de uma biografia. Neste itinerário, a silhueta dos pinheiros – esmaecidos na luz do dia, deixando luzir, entre suas “gulhas, o amanhecer, a pairar na distância de uma tarde de verão – fazem vislumbrar Curitiba tanto quanto o canto do sabiá, atravessando a sonoridade da chuva, gorjeando melodias infindas; o Saci e a reinação das crianças do Sítio do Picapau Amarelo e a chácara distante: do longo convívio com os livros, as lembranças de leitura oferecem temas;  persistem vivas a emoção diante de um quadro,  a sonoridade de uma peça musical. Muito contida, a emoção que se enraíza nas origens a lembrar  a figura materna. Apenas imagem distante, a mãe que não mais existe e pode ser, nessa outra dimensão que desconhecemos, nuvem / estrela / flor, a repousar na  sombra de dois cedros / entre lilases e a relva escura / de um jardim distante. Na emoção de recordá-la e desejar presente, o verso diz que azuis / seus olhos repousam / nas rosas da trepadeira / sobre o portão. Nas estrofes seguintes, cores e luz e sombra no jardim onde, no verso os cedros ainda vicejam, o advérbio indica o tempo que passou.

Azuis:poemas é feito de pequenas estrofes, quase sempre sem título, libertas de sinais de pontuação e em que significados já despontam na expressiva disposição gráfica. No tempo verbal presente, a determinar o agora e nos gerúndios, o breve ou o longo prolongar desse presente. E no nomear das coisas que adjetivos e epítetos enriquecem com significados inesperados – pinheiro / pincéis de agulhas verdes, outono / vôo vermelho e mortal das folhas, do outono das árvores / soltam-se as folhas de um sol / esquecido – se instala um mundo de encantamento no qual se inscreve, sobretudo o efêmero que existe no desencontro branco das ondas, nos pássaros suspensos / ousando por um instante nas árvores. Porque do que é passageiro, Sigrid Renaux se apossa: Eu tenho a tarde toda para olhar as nuvens / eu tenho a tarde para olhar /  a tarde. Assim, do lento ou apressado deslizar das nuvens no céu, como do som do mar na madrugada e da luz que bate nos seus olhos fechados, com o poder que é dado aos poetas, ela os aprisiona em pequenos versos que palpitam de vida e de beleza.

domingo, 24 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha nas memórias de Pablo Neruda: a fogueira


            A quinta parte das memórias de Pablo Neruda tem por título “España en el corazón” e se inicia com o testemunho sobre Federico García Lorca e Miguel Hernández. Logo, sobre a revista El Caballo Verde da qual foi diretor e cujo sexto número não foi terminado porque, no dia em que deveria aparecer, o 19 de julho de 1936, Francisco Franco se rebelara contra a República espanhola. E, novamente, a presença do poeta de Bodas de sangre, no relato do pré-conhecimento que ele havia tido de sua morte. Então, Pablo Neruda fala de España en el corazón, seu primeiro livro de poemas combatentes: creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, tenham tido tão curiosa gestação e destino. Publicado em novembro de 1937, em Santiago, foi traduzido em várias línguas. Um ano depois, aparecia numa edição surpreendente, impresso perto de Gerona, num velho mosteiro. Seu amigo, Manuel Altolaguirre, o mesmo que o fizera diretor de El Caballo Verde, instalou uma impressora em plena frente de batalha. Os soldados aprenderam a fazer uso dela e quando faltou papel, o fabricaram num velho moinho, utilizando não apenas algodão e trapos, mas vendas, roupas, uma bandeira inimiga e a camisa ensangüentada de um soldado mouro. Porém, apenas ficou pronto o livro, deu-se a derrota dos republicanos e milhares de espanhóis iniciaram a sua fuga para França. Entre eles, Manuel Altolaguirre e os soldados que haviam composto e imprimido, em meio à ameaça de morte nas trincheiras, España en el corazón. O livro era para eles um orgulho e o carregavam para o desterro, na sofrida marcha em direção ao norte, numa longa fila, que, muitas vezes, sofria a ação de bombardeios.
            Doze anos antes do aparecimento de Confieso que he vivido, Pablo Neruda publicava na revista O CRUZEIRO Internacional, dez capítulos de suas memórias. O sétimo deles, com o título de “Tempestad en España”, se inicia com o relato da comemoração, na Espanha, dos vinte e cinco anos da insurreição contra a República: Justamente quando escrevo estas linhas, a Espanha oficial celebra vinte e cinco anos da insurreição. Um dado temporal que precisou ser alterado quando retomou os textos escritos em 1962 para o seu livro de memórias. Assim, vinte e cinco anos foi substituído pelo termo tantos que, impreciso, remete ao momento em que ocorreu a ação para um passado indeterminado, permitindo a leitura em qualquer tempo. No entanto, se tal substituição foi necessária, outras houve como, também, eliminações e acréscimos de palavras ou de expressões que se originaram dos mais diversos motivos. Na menção que faz, no texto da revista, à tropa que Franco (designado por Caudillo) passa em revista, ele diz: Estas tropas, que suponho composta por rapazes que não conheceram esta guerra.  No livro, a seqüência sofreu o acréscimo da expressão na sua maioria e a substituição dos adjetivos demonstrativos que, então, passam a indicar uma ação ocorrida mais distante no tempo: umas tropas compostas, na sua maioria, de rapazes que não conheceram aquela guerra. Mais adiante, no texto de O CRUZEIRO, se refere aos moços que desfilam diante da Guarda Moura como aqueles que ignoram talvez a história ou conhecem somente seu lado branco ou negro. No livro, a seqüência em questão, se transforma: ignoram talvez a verdade dessa história tremenda. No episódio que narra a retirada dos republicanos para a França, as modificações possuem um significado que vai além de simples preocupação estilística. Ao se referir aos inúmeros bombardeios lançados sobre os fugitivos inicia a frase com o advérbio alli e usa o verbo desgranar (debulhar): Ali caíram muitos soldados e se debulharam os livros na estrada. Outros, extenuados, enfiaram embaixo de uma pedra ou atrás de um arbusto os perigosos ramos de minha poesia. No livro, apenas: Caíram muitos soldados e se esparramavam os livros na estrada. Outros continuavam a infindável fuga. E o que na versão do livro apareceu diluído numa frase de sujeito indeterminado, como a minimizar a atuação dos franceses, Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegaram no exílio, na revista, se mostra claro não apenas quanto ao lugar, mas quanto ao sujeito da ação: Na fronteira da França as tropas francesas trataram brutalmente os homens que chegavam ao longo exílio.

            E destino igualmente perverso teve, nas injustas mãos francesas, España en el corazón: Numa fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

domingo, 17 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: a chegada


            No Prefácio para a edição de Saga da Editora Globo, escrito vinte e seis anos depois do aparecimento do romance, em 1940, Érico Veríssimo menciona a razão que o levou a escrevê-lo e as escolhas que fez como ficcionista: em princípios de 1940, um brasileiro, ex-combatente da Brigada Internacional anti franquista, lhe ofereceu o seu diário de guerra para que o aproveitasse num romance. Dessas páginas, ele tirou anotações de ordem geográfica e referentes ao movimento das tropas e, ainda, um punhado de outras descritivas da vida nas aldeias espanholas e nas frentes de batalha. De sua imaginação, o personagem Vasco Bruno que de Porto Alegre parte para a Espanha com o intuito de lutar na Brigada Internacional contra Franco, irá narrar a sua experiência como soldado até o momento de sua volta ao Brasil e de sua nova escolha de vida.

            Saga se constrói em quatro partes: na primeira, “O círculo de giz”, o relato da chegada de Vasco Bruno na Espanha e de sua atuação na Guerra como soldado da República Espanhola; a terceira, “O destino bate à porta”, dá conta de seu retorno ao Brasil onde se casa com Clarissa e passa a viver, como agricultor no vale de Águas Claras o que é contado na última parte, “Pastoral”. A segunda parte, “Sórdido interlúdio” é a mais densa do livro. Mais do que ligar a primeira parte à terceira, se constitui um documento sobre o que ocorria em Argelès-sur-Mer. Nesse povoado francês, às margens do mar Mediterrâneo, os espanhóis republicanos foram encurralados como animais num campo de concentração, vigiado por tropas senegalesas, constituídas de soldados brutos e insensíveis.

            Tratando-se de um texto em primeira pessoa, há evidentemente, o registro dos sofrimentos suportados pelo narrador: o frio do vento gélido que levanta areia e neve, a fome que só pode ser saciada irregularmente e com alimentos frios, esquentados no tanque de gasolina de um caminhão, a escassez da água, suja e salobra que para obter era preciso esperar longo tempo na fila. Ao seu redor, estão os outros, cento e oitenta mil espanhóis que esperavam encontrar refúgio do outro lado da fronteira e, que, no entanto, se depararam com uma prisão ao ar livre, o testemunho impera: não temos casas nem barracas, dormimos ao relento e contra o frio, somente o recurso de se amontoar uns por cima dos outros, numa espécie de fétida cooperativo de calor. No espaço reduzido em que se movem homens sujos, peludos, esfarrapados e lívidos, a provação e o sofrimento não os impedem de continuarem a ser iguais a si mesmos no cultivo do egoísmo e do instinto de posse, na ânsia do lucro. Como eles não se dispõem à compreensão, basta que alguém, sem o querer, esbarre no outro, para que uma  violenta troca de palavras se inicie e, por vezes, se degenere em agressões físicas: os contendores, engalfinhados como fera, saem a rolar pela neve. Tampouco se dispõem a esquecer o significado dos possessivos e, assim, o que se apossa de algo, logo se depara com o que aquele que se acredita dono desse algo e se insurja, ferozmente, para defender o quê, talvez, não passe de uma ninharia; e assim, o que busca tirar proveito como o velhote francês de sobrecasaca sebosa que chega, duas vezes por semana, no seu “caminhão cheio de bugigangas para tirar, dos habitantes do campo, suas últimas pesetas em troca de carteiras de cigarro, sabonetes, latas de conserva.

Entre os agressores (o que delata, os que matam, os que legislam contra o semelhante) e as vítimas (rostos macerados, doentes que gemem e se torcem de dor ou têm acesso de loucura ou deliram febris), Vasco Bruno constata a presença dos que revelam ânimo forte, espírito organizador: fazem reuniões, reivindicam, prestam serviços. Em meio do caos em que os prisioneiros se acham demasiadamente enfraquecidos e desmoralizados para reagir e se o fizessem não poderiam se opor à força armada de fuzis e metralhadoras daqueles que os vigiam, eles são as vozes lúcidas e cheias de esperança. Uma esperança que tampouco abandona Vasco Bruno ao ter, ainda, olhos e alma para apreciar os crepúsculos de inverno por trás dos Pireneus embora doente e vivendo, como a população inteira do campo de concentração, o prolongamento da guerra: abjeção e sofrimento impostos aos derrotados além da cruel desilusão de encontrar, do outro lado da fronteira, não a esperada acolhida humanitária e, sim, passagem para uma estação no inferno.

domingo, 10 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: os tipos


Uma paisagem bela tem a força de me comover até as lágrimas. Mas a paisagem humana é a que mais me interessa, diz o narrador de Saga, Vasco Bruno, logo no segundo capítulo do romance. E o que chama de paisagem humana estará presente ao longo da narrativa que faz dos dias que viveu como soldado voluntário da Brigada Internacional que, na Espanha, lutava contra as tropas de Franco. Menciona alguns traços dos companheiros que o rodeiam: cabelos lisos, uma larga cara trigueira, cara ascética, muito branca, de testa alta e lábios apertados, louro e emaciado, duma palidez doentia, quarenta anos presumíveis, magro, tostado de sol e senhor de maneiras mundanas, rosto descarnado e oblongo, dum moreno lívido, cara eqüina e grossas sobrancelhas eriçadas0. E como o hábito de desenhar cabeças humanas lhe dera o gosto de analisar os traços fisionômicos, lhes amplia os perfis: o do velho catalão que perdeu, na guerra, os filhos e netos, a casa, a vinha e os trigais e nos seus oitenta anos tem uma expressão de pétrea energia no rosto pregueada de rugas terrosas e mãos que se assemelhando a raízes tentaculares são enormes e nodosas e parecem trazer ainda a marca da terra; o do polaco que só fala a sua língua e não se dispõe a se entender com os demais por gestos e por expressões; seus olhos são esverdeados e pequenos, seu rosto vermelho e de testa curta. Diante de uma cena de destruição e de morte, olha com olhar vago, mas ao ver o piano, seu rosto ganha uma expressão indescritível. Deixa cair as mãos pesadas sobre as teclas e a música de Beethoven, Chopin, Bach conta delícias do céu. Depois, fecha o piano com cuidado carinhoso e atravessa a sala sombria, apanha o fuzil e sai sem dizer palavra; ou, ainda, o do espanhol de Cadiz cujos pés foram esmagados num bombardeio: Magro, ossudo, encurvado [...] tem um rosto miúdo, a boca muito rasgada e um queixo prognata que lha dá um grande caráter à fisionomia. A barba de três dias branqueia híspida contra o moreno da pele rugosa.

Por vezes, Vasco Bruno se detém nas razões que norteiam seus companheiros: aquele que, apesar de tudo, ainda acredita nos homens e na possibilidade de um mundo melhor ou o que pensa que todos os males do mundo, de um modo geral, se originam da idiotice irremediável do gênero humano e da malévola esperteza dos padres. Identifica idealistas puros que desejam oferecer a vida em sacrifício de qualquer idéia; os que chegam, simplesmente, por espírito esportivo. Não estão desiludidos do mundo nem falam em ideal. Acham que a vida é uma só e o homem tem todo o direito de usá-la ou perdê-la como entender. Os que se mostram sem ilusões quando constatam que tanto o comunismo quanto o fascismo já foram minados pelos seus próprios construtores, que não há nada mais parecido com o comunismo do que o fascismo.

            Sem mencionar nomes ou nacionalidades, fala de tipos turbulentos e palavrosos, sujeitos sociáveis que só podem viver em grandes grupos; dos solitários que procuram os cantos sombrios e dos que anseiam pela hora decisiva e dos que parecem ter prazer no medo terrível que sentem da morte; dos serenamente bravos e dos que se esforçam para não fraquejar. Também, dos insubordinados e dos derrotistas, dos que se entregam à pilhagem e que formam o batalhão disciplinar, cuja missão é cavar trincheiras na linha de fogo, abrir estradas e enterrar cadáveres. Andam sem sapatos e recebem menos alimentos – sem pão e sem vinho – do que os outros. Sujos e queimados de sol já nem parecem homens.

             Num cenário apenas sugerido e quase sempre degradado pelas ações da guerra, esses inúmeros tipos, embora submissos à lei da Brigada Internacional, compõem um universo em que se inscrevem múltiplas idéias e diferentes motivações e no qual nem sempre grassaram os heroísmos ou foram ocultadas as fraquezas ou as dúvidas. Assim, se constituiu, segundo seu autor, o mais controvertido de seus romances, desagradando tanto os esquerdistas como os direitistas. Num momento em que, ferozmente, se digladiavam as ideologias, Saga não é expressão das escolhas políticas de Érico Veríssimo, apenas revelam, no intrincado romanesco das ações bélicas e dos sofrimentos dos homens, as inquietações de um ser pensante diante de um mundo que parece não ter conserto.
 

domingo, 3 de dezembro de 2006

A guerra da Espanha em Saga: o mapa


Vasco Bruno tinha doze anos e estava olhando um mapa pendurado na parede. Clarissa se aproxima e quer olhar também. Sonhadores, perguntam um ao outro qual lugar desejariam conhecer. A China, diz Clarissa. Vasco, com o dedo apontando ao acaso, indica Tortosa, na Espanha. Quatorze anos depois, está em Tortosa. E como soldado voluntário da Brigada Internacional, a defende das tropas de Franco. Chegara na Europa, na terceira classe de um navio, obedecendo ao impulso que lhe viera num momento, de cansaço, de dificuldades financeiras, do desejo de aventuras. No primeiro capítulo de Saga, está em Cerbière, pequena cidade francesa às margens do Golfo de Leão e espera o trem que o levará, junto com outros voluntários, para Porthou, na Espanha, início de um itinerário marcado pelas cruéis tragédias da guerra. Da janela do trem vislumbra os Pireneus cujos cumes de neve recebem a luz do anoitecer. Logo o túnel e a chegada na povoação espanhola, quase toda destruída pelos aviões inimigos vindos da base aérea de Maiorca. No dia seguinte, outra vez no trem em direção a Figueras onde são alojados num velho convento beneditino de seiscentos anos. Logo, partem para Besalu, povoação muito antiga, cujos arredores são tomados pelos gritos dos soldados nos seus exercícios de guerra. De caminhão, sob o céu sombrio numa ameaça de chuva, seguem para Ollot e, daí, num trem que passa por Barcelona para a serra de Cambrills, à beira do mar onde se repetem os exercícios militares e a passagem dos aviões que sobrevoam o acampamento. Pela primeira vez, a explosão das bombas, o espetáculo dos corpos mutilados e da natureza em destroços o que acirra ainda mais a ansiedade dos homens que desejam lutar, mas que ainda se encontram desarmados. Finalmente, chegam as carabinas e os fuzis que são distribuídos antes da partida para a frente de batalha. Saem de madrugada, em caminhões que descem a colina para chegar, à noite, em Rasquera, povoado tipicamente catalão com suas casas brancas em sua maioria de dois andares, ruas tortuosas, calçadas de pedras redondas. À noite, os soldados têm permissão para caminhar pelo povoado e, curiosos, entram numa casa que, à semelhança de muitas outras, estava com as portas e janelas abertas. À luz do isqueiro de um dos soldados, se mostra um pedaço de vida que a guerra interrompeu: na mesa posta, a toalha de xadrez vermelho, quatro pratos, a moringa d’ água, o pão cortado em fatias. Antes do sol nascer, tornam a embarcar e os caminhões seguem para as margens do Ebro onde, num barranco, eles ficam dois dias antes de seguir rio acima para se posicionar na frente do povoado de Miravert, em poder das tropas de Franco. Olham para o seu castelo e escutam os murmúrios de que irão tentar a travessia do rio que, na verdade será feita. Antes, porém, as trincheiras onde estavam foram terrivelmente bombardeadas, assim como Ginestar que avistam de longe, desmoronando em meio à poeira e à fumaça sob o ataque aéreo, prodígio de precisão e método: bombas caem no rio destruindo os peixes e nos abrigos, ferindo e matando. Porém, é do outro lado do rio que Vasco terá o seu batismo de fogo numa luta que durou horas sob o sol causticante e tendo como objetivo um castelo em ruínas. Seguem-se os dias e os combates e eis que Vasco e sua companhia estão em Tortosa, nome que lhe ficará na lembrança, vagamente ligado à idéia de destino. Andando ao longo das trincheiras, é baleado e se inicia, então, um percurso que já começa a ser o de regresso: estação de Tarragona, hospital de Barcelona, trincheiras da serra de Caballs, hospital de Mataró, interregno em Barcelona. E, retirada em direção à França, junto com a grande multidão de espanhóis onde, além da derrota, novos horrores lhes advêm nesse espaço entre o mar e a cerca de arame farpado em que foram encurralados.

            Se os topônimos marcam o caminho percorrido pelos soldados da Brigada Internacional, o que os distingue, no entanto, é a crueldade de cada um dos atos de guerra da qual são o cenário. Érico Veríssimo, documenta em Saga (1940), não apenas a destruição material que da guerra decorre, mas o sofrimento dos que estão a seu serviço e de suas vítimas: mortes e perdas, fome, sede, cansaço, solidão. Também esse alinhavar de razões para justificar tantas dores, numa narrativa em primeira pessoa, voz do gaúcho Vasco Bruno, que, além de relatar o que presencia, expressa as emoções e as inquietudes de um homem que as circunstâncias fizeram soldado.