domingo, 30 de abril de 2006

Os desenhos


            Num cartão postal de Londres escreveu para o amigo: ou a obediência estúpida ou a revolta. Optou, desde cedo, pela revolta. Seu nome, Raimundo, filho único de um homem rico de Manaus que, no culto do trabalho e da produtividade, abomina o seu gosto pelo desenho e, procurando desviá-lo da vocação, o maltrata.

            Mais uma vez, neste Cinzas do Norte (Companhia das Letras, 2005), seu terceiro romance, Milton Hatoum constrói uma trama de desencontros familiares. Trajano Matoso, magrinho, tímido, elegante, assim o descreve a mulher por quem se apaixona; louco, duas vezes doente, pensa o filho que num momento de cólera o acusa de ser um impotente de corpo e alma.... Segredo pressentido ou afirmação raivosa que, se verdadeira, vai estar na origem do ódio que lhe devota o pai. Diz Macau, o motorista da família, que tinha pena do menino, pois o patrão não parava de implicar com ele: Um pai torto: nunca pôs a criança nos braços. Tinha uma birra esquisita com o Raimundinho. Birra que o leva a aprisioná-lo no porão, quando pequeno, para que não brinque com as crianças da rua; a agredi-lo, quando o encontra com elas ou, mais tarde, a bater-lhe com o cinturão porque lhe ofendera os  amigos.

            O filho, por sua vez, se sabe vigiado, perseguido, cerceado e se debate, buscando um outro espaço que não o palacete neoclássico onde vive. Não ignora o desprezo de que é vítima, manifestado em palavras que não somente o atingem quanto ao desleixo de vestir ou o asseio das mãos, sempre manchadas de tinta, mas em insinuações perversas além da invariável convicção do pai que ele  não promete nada, não é nada, um delinquente a pensar que a revolta é uma façanha. Que seus desenhos nada mais são do que rabiscos obscenos, e o seu permanente empenho em desenhar é um vício, uma doença que, então, é preciso erradicar. E Raimundo não aceita orientações. Nem do pai, submisso a seu espírito prático, a negar um futuro construído com devaneios, esperando que o filho se transforme no que deseja: um ser forte a colecionar bravuras no Colégio Militar. Tampouco dos  que lhe acenam com os caminhos que despreza, o da política e o do empresariado.


            Na recusa de ser manietado, desobedece, engana, enfrenta, querendo ver o mundo por seus próprios olhos. Assim, entende que o trabalho, apregoado pelo pai, nada mais é do que a exploração do mais fraco; assim, como aluno do Colégio Militar, percebe que os filhos dos militares não graduados, moleques que fazem o trabalho pesado, jamais poderão ser mais do que sargento; assim, sofre, indignado, pela floresta devastada, pela insanidade do conjunto habitacional construído pelo prefeito: cubículos sem água nem luz, alinhados em ruas enlameadas que os políticos vão inaugurar com pompa; assim, constata a miséria dos índios, dos trabalhadores, das meninas de vida airada.

            E, se expressa, desenhando tudo o que vê e o agrada: um bicho-preguiça, uma garça, um rosto, um barco, uma paisagem.Ou, o que repudia: a violência dos jogos esportivos nas quadras da escola que representa no movimento dos corpos a correr, a girar, a cair, a se contorcer , nas expressões surpreendidas em caretas terríveis. Ou o que abomina: aqueles homens persuadidos de que são donos do país (e de sua gente) que revela, em caricaturas, nas quais, mais do que o grotesco da representação, está forjado um testemunho de valor. De um general, o rosto rechonchudo, olhos afundados, de vidro, uma papada de peru de onde escorriam medalhas e cadáveres. De um marechal-presidente, a cabeça rombuda, espinhenta e pré-histórica de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto numa carapaça. Ao redor das patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições grotescas.

            De Manaus, do cenário no qual a cidade se inscreve, de seus próprios conflitos, nada deixou. Seus desenhos foram destruídos, se perderam ao longo da vida dispersa e sem rumo que levou. Prevaleceu, no entanto, e com êxito,  a obra de um outro artista (ou presumível artista) cujas telas mostravam paisagens com sorridentes índias nuas,  enormes araras coloridas cujas asas se abriam para voar num céu dourado a iluminar a floresta.

           

domingo, 23 de abril de 2006

Um certo olhar


A idéia inicial de Hugo Studart era mostrar, com vistas a um trabalho jornalístico, os discursos, na acepção que Michel Foucault dá ao termo, das Forças Armadas sobre a Guerrilha do Araguaia. Ao conversar, porém, com militares que participaram no combate a essa insurreição, seus depoimentos o levaram à busca de outros, à pesquisas em documentos, periódicos, relatórios e o fizeram depositário de um importante material que usou, então, na dissertação de Mestrado para o Departamento de História da Universidade de Brasília: “O imaginário dos Militares na Guerrilha do Araguaia (1972-1974)”. Defendido em 2005, seu trabalho, revisto e aumentado, se constituiu o livro A lei da Selva que a Geração Editorial acaba de publicar. Seu subtítulo, “Estratégia, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia”, indica objetivos precisos na procura de saber o quê buscavam, como pensavam, de que tinham medo os militares e no empenho em tornar público o resultado de sua pesquisa sobre episódios que têm permanecido ocultos, mas que devem ser trazidos à luz. Assim, as circunstâncias em que morreram lutando os desaparecidose onde estão os seus corpos. Porque, até agora, somente o corpo de Maria Lúcia Petit da Silva foi encontrado pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em 1991, sem cruz, nem placa de identificação, no cemitério de Xambioá. De outras guerrilheiras restou apenas um testemunho.  

            Dinaelza Santana Coqueiro, a Maria Diná, estudante de Geologia na Bahia, era conhecida guerrilheira . Tinha, entre os moradores da região e os militares, a pecha de valente, corajosa, perigosa. Foi apanhada pelos pára-quedistas e levada para Marabá onde agüentou cinco ou seis dias de pau violento, como diz o militar que a matou. E’ ele quem relata a sua execução: a pistola travara e teve que pegar outra. Um companheiro de armas se aproximou para ajudar a fazer o serviço, expressão que era usada (como mandar para o saco) para substituir os verbos matar, exterminar, executar os prisioneiros que já estavam sob a custódia do estado. Lembra que a guerrilheira, sem chorar, olhava para ele com ódio, um ódio fantástico, ódio, muito ódio. Ao lhe ser perguntado o que tinha sentido diante dos olhos de sua vítima, respondeu que nada, pois estava preparado para fazer aquilo mesmo.

            Reação diferente daquela do militar que matou Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, a Dina, cuja presença de quatro anos na Guerrilha foi extremamente marcante. Por sua determinação, guerrilheiros a obedeciam. Pela sua coragem testada nas armas, soldados a temiam. Para os militares que entraram na mata, rondava o temor de sua aparição. O depoimento de um militar que esteve entre os que lutavam na selva a revela mulher forte e determinada, um perfil que se completa pela sua fama de implacável, invencível. Foi presa em junho de 1974, por uma patrulha do Exército. Magra, enfraquecida pela alimentação precária, foi levada para Marabá onde ficou cerca de duas semanas, submetida a interrogatórios até ser levada, de helicóptero, para algum ponto da floresta, perto de Xambioá. Com as mãos amarradas nas costas, caminhou, com o grupo de três militares, uns duzentos metros até a clareira em que eles pararam.. Perguntou se iria morrer e pediu para morrer de frente, agindo como guerrilheira: de pé, lutando até o último instante, “morrer com a dignidade de um revolucionário de seu tempo. O executor acedeu e ainda disse: Então vira prá cá. Ela obedeceu e o encarou nos olhos. Um olhar em que havia mais orgulho do que medo, ele contaria, depois, para seus companheiros de farda. Aproximando-se lhe estourou o peito com uma bala de pistola calibre 45. Dina levou, ainda, um tiro na cabeça. Ali a enterraram e seu corpo nunca foi encontrado. O executor também contaria que ficou por muito tempo com o olhar de Dina na cabeça.

domingo, 16 de abril de 2006

A opinião


Há vinte e cinco anos atrás, em abril, lançado com imenso aparato publicitário a anteceder sua aparição, Crónica de una muerte anunciada rompia o silêncio de Gabriel García Márquez, com tiragens surpreendentes: mais de dois milhões de exemplares na Colômbia, pela La Oveja Negra, além daqueles publicados pela Sudamericana da Argentina, Bruguera da Espanha e Diana do México.

            Caso raro entre os romancistas do Continente, ter assinado mais do que uma obra-prima, neste breve romance, Gabriel García Márquez alcançará, como definiu o seu muito cuidadoso e detalhista biógrafo, Dasso Saldívar, a suave e tranqüila perfeição. Relato harmonioso no qual personagens se esboçam em definitivas poucas frases e em admirável sintonia com a atmosfera de coscuvilhice que domina a pequena cidade e a faz responsável pelo crime que, submissos aos códigos de honra, os irmãos Viriato iriam cometer. Para vingar a irmã, em cuja confissão acreditaram quando foi levada a declinar o nome do homem que a havia desonrado, sem, verdadeiramente o querer, assumem o fado de acabar a golpes de punhal com aquele de quem haviam sido amigos e sem que houvesse alguém – cada um com suas razões – para impedi-lo.
 

            Encerrada entre as cinco e meia e sete e cinco, da manhã, em que foi retalhado como um porco, a narrativa flui lenta, em espirais, alternando o presente da ação com vários níveis do passado, justapondo asserções que se negam como convém aquela que dá conta do que aconteceu num passado distante. Vinte e sete é o tempo contabilizado pelo narrador ao mencionar a evocação de Santiago Nasar, ainda com vida, pela mãe, naquela segunda feira ingrata. E que, na verdade, é quase o tempo que passou entre o acontecido e o seu transformar-se em obra de ficção.

            Crónica de una muerte anunciada foi publicado trinta anos depois da morte de Cayetano Gentile Chimento, ocorrida no dia 22 de janeiro de 1951. Era um estudante de medicina, vivia em Sucre e era amigo de Gabriel Gárcia Márquez. O escritor já morava em Barranquilla e, usando o pseudônimo de Séptimos, assinava a coluna “La Jirafa” no jornal El Heraldo. Ao saber da morte do amigo pensou viajar a Sucre e reconstituir o crime para uma reportagem que nunca chegou a ser feita. Sua mãe, descobrindo suas intenções, lhe pediu que nada escrevesse enquanto a mãe do moço assassinado, que era sua comadre, estivesse viva. Em Vivir para contarla, Gabriel García Márquez lembra que nenhum argumento a convenceu do contrário e que ele achou uma falta de respeito escrever sem a sua permissão. Um compromisso do qual somente foi libertado quando ela mesma lhe telefonou para Barcelona, onde então morava, para  dar a infausta notícia da morte de sua amiga. Dois anos depois, Crónica de una muerte anunciada estava publicada, mas ela não quis ler o que o filho escrevera, convicta de que uma coisa que saiu tão mal na vida não pode sair bem num livro. No entanto, o que acontecera – perseguido pelos dois irmãos, Cayetano Gentile Chimento procurou refúgio na sua casa onde a mãe, certa de que já estivesse no  quarto, trancou a porta da rua, deixando-o à mercê dos golpes que o mataram – além da tristeza que sentiu, o fez entender o crime como uma tragédia de responsabilidade coletiva: não somente Margarita Chica Salas, a moça que nomeara o responsável pela sua honra, embora ninguém ignorasse que tal honra não fosse tão intocada, não era a única culpada pela morte, mas a cidade inteira. Um tema que o irá acompanhar por muito tempo – não se passava um dia em que não tivesse desejos de escrever sobre ele – até que um dia, no aeroporto de Argel, quando a porta de saída se abriu e deixou passar um príncipe árabe, levando no punho um falcão amestrado, lembrou-se de seu amigo Cayetano Gentile que aprendera de seu pai a arte de altanaria. A partir de então, percebeu que não teria paz enquanto não lhe escrevesse a história. Seguiu o sinuoso caminho das lembranças, aceitou fatos e imagens que as circunstâncias de vida lhe ofereceram, entrelaçou o trágico e o burlesco ao retratar os humanos e, contradizendo o prognóstico materno, escreveu um de seus livros mais  fascinantes.

domingo, 9 de abril de 2006

Coragem desvanecida no segredo


          Acaba de ser publicado pela Geração Editorial de São Paulo, A lei da Selva de Hugo Studart. Tem como sub-título “Estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia”, conteúdo que, é evidente, não pode prescindir da minuciosa, tanto quanto possível, narrativa dos fatos, acrescentando, completando, por vezes, o que já fora abordado em outras obras sobre o assunto, uma vez que houve possibilidade de acesso a documentos que não haviam sido, ainda, revelados e, sobretudo, ao testemunho de muitos daqueles que participaram do confronto. 
Embora o objetivo de Hugo Studart não tenha sido a reconstrução da história definitiva desse confronto, um levante armado de inspiração marxista que pretendia desencadear uma guerra popular revolucionária no Brasil, partindo do campo para a conquista das cidades, que não  deve ser fadado ao esquecimento, uma vez que a sociedade tem o direito de conhecer a sua própria história,  mas pesquisar e analisar o significado que teve para os militares que nele participaram e procurar conhecer-lhes os motivos, além daqueles óbvios da época, o combate à subversão comunista, a sua obra se amplia pelas informações que oferece: resultado de uma tarefa assaz difícil, pois ou documentos foram destruídos – teriam sido quase todos queimados em fins de 1974 – ou houve ordem superior de que não fosse propiciada ajuda às pesquisas pretendidas; ou, ainda, as informações obtidas e organizadas por militares foram lapidadas por eles, processo cujo intuito era confirmar informações, corrigir dados, retirar excessos [...], que levou à necessidade de pesquisas complementares para esclarecer lapsos e omissões por vezes irrelevantes, outras vezes propositais porque, muitas vezes, os militares decidiam que se tratava de assuntos sigilosos que razões de Estado levavam a ocultar. Razões de Estado que, ao longo do confronto, por meio de mentiras deliberadas e de violações de normas jurídicas, morais e políticas esconderam o que de fato acontecia na Floresta Amazônica, de 1972 a 1974, entre os guerrilheiros e as Forças Armadas, instituindo o império do oculto. Um império que não foi poderoso nem eficaz o suficiente para impedir que viessem à luz fatos ocorridos sob o signo da barbárie.

 A suspeita de que militares em ação contra a Guerrilha do Araguaia teriam permitido práticas de exceção como matar em lugar de prender, deixar cadáveres insepultos, torturar, executar sumariamente, mutilar mortos foi confirmado pelos depoimentos que Hugo Studart obteve junto a alguns militares, inclusive de alguns que foram escalados para os pelotões de execução de prisioneiros. Assim, por não possuir o pelotão máquina fotográfica, a fim de que fossem os mortos identificados pelos órgãos de inteligência, houve diversos casos de amputação de dedos, de mão ou da cabeça do guerrilheiro morto; os disparos que mataram a guerrilheira ferida; o encarceramento de moradores da região, suspeitos de ajudar os guerrilheiros, que foram colocados em valas, encimadas por uma grade de ferro, ficando, portanto, à mercê do sol e da chuva além de serem submetidos à pressão psicológica e aos maus tratos; a ausência de informe sobre os últimos guerrilheiros, cujo destino ficou ignorado; os cuidados na execução dos prisioneiros, visando preservar o segredo da ação; a obediência às ordens de matar, mesmo quando se tornava evidente a não periculosidade do prisioneiro.

            No trabalho de busca de documentos ou de relatos, houve militares que se propuseram, não somente, a dar o seu testemunho a Hugo Studart como a ajudar na busca de documentos. Outros, à medida que a pesquisa avançava, descobrindo detalhes sobre os atos de exceção no Araguaia, recuavam e deixavam de colaborar. Muitos não queriam que se tornasse conhecida a prática de execução de prisioneiros ou as circunstâncias em que ocorreram as mortes de guerrilheiros ou a existência de pelotões de extermínio. No entanto, quase todos, uns mais outros menos, embora dispostos a contar o que sabiam, insistiram para que seus nomes e os codinomes que usaram para se ocultar não fossem mencionados.

 

domingo, 2 de abril de 2006

Quase nada

         
Um narrador tradicional – aquele que parece tudo saber – fixa no conto “A liberdade dos varais” o momento em que ela olhou as roupas secando ao vento e desejou a liberdade dos varais, acreditando que possuem uma felicidade  inerente de tarefa realizada, da fibra revendo o sol, umidade liberada aos poucos, para se impregnar da luminosidade de um dia de verão. Há menção à água corrente, à densidade branca, ao cheiro de roupa limpa, ao vento que levanta as folhas e um pouco de poeira, às recusas e dúvidas que não liberam e à submissão feminina aos usos estabelecidos. Uma lágrima corre enquanto ela fica ali, à sombra do abacateiro, imaginando mundos, triste como quem desistiu. Submissa aos desassossegos. Sorri, limpa o rosto com a mão ao ouvir a voz do filho que a chama da sacada, contente por vê-la ociosa no quintal e a faz lembrar que tinha roupa para lavar, comida para fazer, meias para cerzir. E cicatrizes que não suportaria emendas.
 

            Na primeira pessoa, a voz do conto “Não teve nada de mais”, a lembrar (ou relembrar) o momento muito preciso de seu passado em que deixa um mundo para trás e parte no caminhar torturado de quem vai sem querer ir, ciente de que todos os mapas confirmam o norte como o contrário da direção e com o qual inicia o relato: no dia em que eu fui embora[...]. Um partir que a despedaça porque, se leva muito pouco (Da alma, só uns pedaços, uns discos, as louças da família, as toalhas bordadas em ponto cruz), menos, é o que deixa, embora deseje que dela fique um perfume, uma sombra, algo de imóvel. Mas, o que, de fato, se faz presença é a cerimônia da despedida – olhar pela última vez, silenciar porque não há mais nada a dizer, tornar-se estranha ao cenário do qual fizera parte – num desenrolar, à margem de qualquer circunstância ou sinal, a marcar o vazio que impera nas ausências: nem um adeus generoso, uma intenção de abraço, nenhum titubear. Depois de cruzar a porta da rua, tampouco os vizinhos acudiram ou houve um badalar de sinos, um uivar de cães, um soprar do vento. O mar não se dividiu, o sol não se apagou.           No dia em que fui embora a voz repete, já agora acrescentando não teve nada de mais a encerrar o relato que apenas sugere o talvez imprescindível valor da promessa, da verdade perdida, da desesperança porque se esmaecem no ritual da partida, feita de toques, de olhares, da mágoa em relação aos relógios que deviam silenciar em memória da vida que se despedia também, da compreensão de que tudo vai tornando passado o que ainda não é.

            Publicados em Teresa, que esperava as uvas, esses dois contos, entre os que testemunham o seu tempo a relatar a violência urbana, a solidão, a crueldade que faz trincar os afetos, surpreendem um efêmero fragmento de vida. Como se um antes ou um depois não importassem, o relato capta, num relance o sentir momentâneo que pode advir de um olhar, de uma escolha. Nesses pequenos nadas, Monique Revillion descobre a emoção que alimenta o seu texto. Ao perseguir o âmago dos personagens, sua alma, suas percepções e sentimentos, a maneira como esses personagens percebem os fatos, como diz, ela encontra muito dessa humanidade presente em todos nós e a expressa na sobriedade de uma linguagem onde ora irrompe a riqueza de um símile, ora o inesperado da metáfora.

            Premiada no Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, com textos publicados em antologias e revistas literárias, Monique Revillion reúne seus contos, pela primeira vez, em livro publicado, neste ano, pela Geração Editorial de São Paulo. Com sua bela capa que, em acorde com o título, se mostra no desenho de um cacho de uvas, onde a figura de um peixe, de arabescos e de linhas em espiral remetem a um ou outro conto e em que andorinhas, borboletas, abelhas flores e folhas, representadas em azul, verde e lilás que se alternam em tons mais ou menos suaves, inscrevem sonhos num mundo de realidades, Teresa, que esperava as uvas inicia uma trajetória que dispensa trilhas conhecidas e modelos outros.