domingo, 24 de julho de 2005

Nossa triste casa


            Em 1981, Índio Brum Vargas publicou Guerra é guerra, Dizia o torturador  (Rio de Janeiro, Codecri), testemunho  das torturas e da prisão que sofreu durante a ditadura militar, instaurada no país, em  1964. Agora, em junho passado, acaba de ser lançado pela AGE de Porto Alegre, seu novo livro,A Guerrilheira: mistério e mortes na Ilha do Presídio um relato que retoma a sua vivência, no cárcere, como prisioneiro político, a partir de um plano de fuga,  imaginado por ele e dois companheiros que entre os quarenta e seis que ali penavam não estavam dispostos a aguardar um julgamento militar e para quem a liberdade significava poder prosseguir a luta  contra a ditadura.  O plano era render a guarda e tomar a ilha para o que seria preciso ou subornar ou coaptar um carcereiro e, ainda ter alguém que levasse para dentro da prisão uma arma.Tarefa  pedida a Tânia, universitária  extremamente audaciosa,  militante de uma organização de esquerda; seria  ajudada por Solano, soldado da Polícia Militar que, semanalmente dava guarda na Ilha do Presídio onde foram apresentados um ao outro, num domingo, dia de visita aos presos. Excetuando-se o capítulo IV em que Índio Brum Vargas se detém sobre as condições  sub-humanas em que viviam os presos comuns, retirados da Ilha do Presídio para dar lugar aos presos políticos e dos capítulos V a XI, parênteses, uma história dentro da história   assim o considera o autor, cujo fim é explicar os túmulos ali existentes , A Guerrilheira  se constrói em dois espaços:a cadeia da Ilha do Presídio e a cidade.

            Fortificação construída em meados do século XIX para ser depósito de munição do exército, daí o seu nome, Ilha da Pólvora,  será transformada em prisão e, a partir de abril de 1970, em prisão política. Situada no meio do rio, entre Porto Alegre e Guaíba, tem paredes de pedra  de mais de um metro de espessura  e um único portão. Dela, o autor faz uma  cuidadosa descrição que  mostra quão difícil seria realizar o que pretendiam tanto quanto esconder a metralhadora que, desmontada e  em partes devia lhes chegar às mãos. Da cidade,  após o primeiro contato entre Tânia e Solano, na livraria Sulina,  apenas a menção a seus logradouros: Rua da Praia, Avenida Borges de Medeiros, Praça Júlio de Castilhos,  Viaduto Otávio Rocha. Itinerários bem definidos de  encontros que,  embora conduzidos pelas normas de segurança que orientam  militantes políticos e com objetivos bem precisos, irão,  revelar também, nos diálogos e nas confidências, as inquietações e as dúvidas dos que devem levar adiante a missão de risco que lhes foi confiada.

            Por um momento, a narrativa se fixa em Solano, na sua emoção diante da feminilidade da estudante que, atenta as suas tarefas  dessa emoção procura se esquivar ou , talvez, apenas a perceba; um outro, igualmente, na impressão que a sua beleza causa num companheiro de militância. Mais demoradamente, se detém na insegurança, no medo, na angústia, na solidão de Tânia ao receber, em código, um aviso de que deve evitar qualquer contato com Solano; depois, na ansiedade que a acomete, ao ser incumbida de uma tarefa difícil e perigosa,   da qual dependerá  a liberdade de quatro pessoas.

Abrupto, o  ponto final do relato, quando se encerra o destino da guerrilheira, conduzida pela  coragem, pela  a ilusão, pelo  desprendimento  ao  interrogatório, à tortura, à sevícia, à morte:  inglório sofrimento ao qual se acresce a imensa dor dos que ficaram à espera – Mãe, eu venho passar o Natal contigo. -  de um retorno que jamais aconteceu. Tânia nunca mais foi vista.

Entre o que viveu  e sentiu na Ilha do Presídio e o que se permitiu imaginar no centro da cidade, Indio Brum Vargas  em A Guerrilheira refaz caminhos  que, embora,  sejam feitos, ainda, de  zonas de sombra, devem ser palmilhados.  Como em Guerra é guerra. Dizia o torturador, em epígrafe, as palavras de Victor de Britto Velho,  seu professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul:  Ai de nós se esquecermos do que aconteceu em nossa própria casa.

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