domingo, 5 de junho de 2005

Além do revoar dos pombos


            O continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão, algumas ilhas de trégua, de esperança, interregnos do terror. Nelas, delas, emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos sufocados. Vivências do absurdo, do sangrento, renovados na escrita, procurando uma compreensão do  incompreensível, procurando um desabafo do irremediável: textos depoimentos. Não menos fortes, profundos, cruéis, igualmente refazendo o que foi como se imaginário tivesse sido, os textos de ficção. 

            Da Argentina é Gerardo Mario Goloboff. Poeta, ensaísta, romancista. Criador de palomas, (Buenos Aires, Bruguera, 1984) seu romance desse interregno que então,  vivia  o país. Interregno que se desejaria muito longo e muito eterno para que nele pudessem respirar e crescer os criadores e os pombos.  Os pensadores, os trabalhadores, os artistas e a paz e a ternura. Limpei as macegas que tinham crescido no quintal [...] Pus várias tábuas no galpão desconjuntado. Curei e reavivei a parreira e passei cal nas paredes. Assim começa a última página do Criador de palomas. Um renascer muito simples, como se fosse natural. Uma fé muito grande e muito boa: Estendi, tremendo, o braço e a pomba se aproximou  da minha mão.

            O romance é a história de um aprendizado. Do amor, da ternura, da perda. Pedaços de vida registrados com a aguda precisão de um conhecedor da alma humana. Mas, sobretudo, alma adolescente, desfazendo-se  em silêncio. O contar se apóia em fatos acontecidos no passado a um menino de nove anos, mais tarde, de doze anos: uma festa de aniversário, um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um banquete de casamento, a chegada no matadouro para comprar carne, a viagem a outro povoado para vender roupas. Costumes e gentes, algo do país que se define nas sensações: cheiro das acácias, da  terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, do gosto amargo do chimarrão, do sal na carne.

            Mas, o que realmente importa são os pombos. O profundo prazer de tocá-los, o prazer muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas: Clara, Verana, Blanca, Pampeana, Carla, a pequena pomba doente. E, mais do que elas, a presença dominante da morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio de uma pocinha de sangue; outra, com um corte profundo no pescoço, as patinhas cortadas, as asas torcidas, as penas arrancadas. Ainda, outra, com uma bala esburacando-lhe o peito. As demais, caindo longe. Mortes que acontecem de repente e assim de repente, são comunicadas ao leitor. Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor  ou, talvez,  do acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada por aqueles que vivem no Continente massacrado. Se as mortes não são explicadas, existem indícios, existem insinuações. Uns e outros diluídos, porém, nos momentos, feitos de brincadeiras e de risos,   vividos pelo menino no qual a violência do extermínio se constitui uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é definido como esse torneio desproporcional entre a criatura indefesa e os seus captores, se insere no mundo ficcional depois de se ter constituído um cotidiano para muitos.

            Criador de palomas, claros escuros alinhados com a maestria da simplicidade. Ritmo de vida marcado pela morte. Um dizer inocente, um falar sem que se note. Como que seda e lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica ferido para sempre.

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