O
continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão,
algumas ilhas de trégua, de esperança, interregnos do terror. Nelas, delas,
emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos sufocados. Vivências do absurdo,
do sangrento, renovados na escrita, procurando uma compreensão do incompreensível, procurando um desabafo do
irremediável: textos depoimentos. Não menos fortes, profundos, cruéis,
igualmente refazendo o que foi como se imaginário tivesse sido, os textos de
ficção.
Da
Argentina é Gerardo Mario Goloboff. Poeta, ensaísta, romancista. Criador de
palomas, (Buenos Aires, Bruguera, 1984) seu romance desse interregno que
então, vivia o país. Interregno que se desejaria muito
longo e muito eterno para que nele pudessem respirar e crescer os criadores e
os pombos. Os pensadores, os
trabalhadores, os artistas e a paz e a ternura. Limpei as macegas que tinham
crescido no quintal [...] Pus várias tábuas no galpão desconjuntado. Curei e
reavivei a parreira e passei cal nas paredes. Assim começa a última página
do Criador de palomas. Um renascer muito simples, como se fosse natural.
Uma fé muito grande e muito boa: Estendi, tremendo, o braço e a pomba se
aproximou da minha mão.
O romance é a história de um aprendizado. Do amor, da
ternura, da perda. Pedaços de vida registrados com a aguda precisão de um
conhecedor da alma humana. Mas, sobretudo, alma adolescente, desfazendo-se em silêncio. O contar se apóia em fatos
acontecidos no passado a um menino de nove anos, mais tarde, de doze anos: uma
festa de aniversário, um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um
banquete de casamento, a chegada no matadouro para comprar carne, a viagem a
outro povoado para vender roupas. Costumes e gentes, algo do país que se define
nas sensações: cheiro das acácias, da
terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, do gosto amargo do chimarrão,
do sal na carne.
Mas,
o que realmente importa são os pombos. O profundo prazer de tocá-los, o prazer
muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas: Clara, Verana, Blanca,
Pampeana, Carla, a pequena pomba doente. E, mais do que elas, a presença
dominante da morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio
de uma pocinha de sangue; outra, com um corte profundo no pescoço,
as patinhas cortadas, as asas torcidas, as penas arrancadas. Ainda, outra,
com uma bala esburacando-lhe o peito. As demais, caindo longe.
Mortes que acontecem de repente e assim de repente, são comunicadas ao leitor.
Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor ou, talvez,
do acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada
por aqueles que vivem no Continente massacrado. Se as mortes não são
explicadas, existem indícios, existem insinuações. Uns e outros diluídos,
porém, nos momentos, feitos de brincadeiras e de risos, vividos pelo menino no qual a violência do
extermínio se constitui uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é
definido como esse torneio desproporcional entre a criatura indefesa e os
seus captores, se insere no mundo ficcional depois de se ter constituído um
cotidiano para muitos.
Criador de palomas, claros escuros alinhados com a maestria
da simplicidade. Ritmo de vida marcado pela morte. Um dizer inocente, um falar sem que se note. Como que seda e
lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica ferido para sempre.
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