domingo, 12 de junho de 2005

A porfia das árvores


            Félix Moral vive exilado na França onde foi salvo das terríveis seqüelas das torturas a que foi submetido no seu país por Jimena Tarsis com quem passa a viver. Circunstâncias incomuns, a realização de um Congresso Internacional sobre “História, cultura e sociedade na América Latina” na capital do Paraguai,   o levam à inabalável decisão de retornar a sua pátria, acreditando que terá condições propícias para matar o tirano que há anos se mantém no poder. Na viagem, continua a escrever o diário que iniciou algum tempo antes e que  pretende seja lido por Jimena quando ele não mais existir. 
            A segunda parte de El Fiscal, romance de Augusto Roa Bastos, publicado em 1993, pela Sudamericana de  Buenos Aires, tem início com a informação de que dentro de vinte minutos ele  irá chegar a Assuncão.  Porém, desde os nove mil metros de atitude até o momento em que o avião começa a descer,  não lhe foi possível vislumbrar nem o céu, nem a terra, só uma imensidão sem cor, efeito que presume se deva à selvagem destruição dos oitocentos mil hectares de selvas virgens para a construção da hidroelétrica.

            Pouco antes, o comandante  anunciava estarem prestes a atravessar a fronteira Brasil/Paraguai e que, em poucos minutos,  iriam sobrevoar a área central da hidroelétrica. A maior do mundo, ele precisa,  acrescentando  serem  as represas do Niágara ou de Assuán  pequenos charcos diante desse lago de dez mil quilômetros quadrados. E continua, repetindo com a voz cheia de nacional orgulho a fastidiosa enumeração de turbinas e potências que nenhum passageiro entende mas que aplaude,  premiando o seu fervor nacionalista  a guiar, ainda, a apologia desmedida que deixa algo irônicos e incrédulos parte dos convidados, passageiros desse vôo:  A luz da central de Itaipu alumia mais do que o sol, mas não se apaga como o sol, ao cair da noite. O céu noturno e o céu diurno deixaram de serem vistos no Paraguai. Não se  vêem mais, o sol, a lua nem as estrelas....Continuam existindo talvez, mas nem fazem falta...A luz que nunca se apaga de Itaipu ilumina o Paraguai num dia perpétuo como o poder do Grande Reconstrutor....

            Depois, foi a aterrissagem   brusca, a poucos metros da torre, a invasão de homens armados em meio à desordem provocada pelo medo, o assassinato de um dos passageiros, a instalação no hotel luxuoso. E a caminhada noturna  pelas aforas da cidade quando de repente um curto circuito faz desaparecer a luz turva e vermelha que reinava, deixando a noite irromper, esplendorosa, no alto, adornada de astros, o arco da lua, cravado no azul do céu. Logo, a luz fictícia turva e avermelhada volta  a reinar. A imensidão azul e cheia de estrelas, o quarto minguante da lua desaparecem escondidas por uma luz que não era nem do dia, nem da noite. Pelo caminho de terra, entre o capim, Félix Moral se dá conta das partículas macias e olorosas como gotas de chuva intermitente que lhe cobrem o rosto e os ombros. Indaga do menino,   guia dessa excursão noturna,  que explica serem sementes das selvas do Alto Paraná:  Para construir a represa tiveram que derrubar a selva. Cortaram milhões de hectares. Já não há mais mato virgem. Esses brotos de fetos e de outras espécies de árvores escapam da mortandade da madeira. Escapam e voam com os ventos do este e do norte em busca das terras que perderam. Mas não tem memórias. Voam a cegas. O vento os leva para qualquer lugar.

E teimosos,  esses brotos renascem onde encontram uma terra boa. 

 

 

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