José
Hernández, seu autor, foi viver no campo
quando tinha doze anos de idade. Nos anos que se seguiram, conheceu os gaúchos
com quem compartilhou os trabalhos
de domador, os perigos de uma vida em
plena natureza, a força para atravessar
rios e se orientar nos imensos desertos,
a coragem para enfrentar as
provocações e as brigas. Seu irmão assim sintetiza a transformação que nele se
operou: José se fez gaúcho. E, assim, pode constatar a situação em que
viviam esses homens do campo que as
injustiças e as perseguições transformavam em bandido,
Em
Martin Fierro, José Hernández dessas injustiças e perseguições quer
deixar testemunho. Na primeira pessoa, seu personagem relata a vida de agruras
– o destino de todos os gaúchos – que levou a partir do momento em que se deixa
apanhar pelo serviço militar e é levado para a guarnição da fronteira onde a
luta contra os índios é feita sem armas, onde constata a corrupção dos
superiores, onde jamais lhe pagam o soldo. Razões que o levam a desertar.
Porém, ao chegar de volta a seus campos, encontra só uma tapera. Desesperado,
busca consolo numa pulperia, briga, mata e perseguido, passa a viver se escondendo da polícia. Até que,
cercado por muitos soldados, sua
valentia, ao enfrentá-los, leva um
daqueles contra os quais se defende, o sargento Cruz, a ajudá-lo na luta e a
desbaratar seus perseguidores. Reconhecendo-se
companheiros de desgraça, decidem abandonar os civilizados, atravessar as fronteiras e se unir aos índios porque lá, os caciques agasalham o cristão. O
poema termina com o autor assumindo
a sua autoria, dizendo que
relatou a seu modo Males que conocen todos / pero que naides contó, dois versos,
graficamente distintos dos demais, em
que não deixa dúvidas sobre a sua intenção.
. Porque a
autoridade que decide do destino dos gaúchos,
instaurando a lei da vagabundagem e exigindo-lhes submissão, confunde
poder e abuso de poder e se caracteriza pela ladroagem e pelo arbítrio. Martin
Fierro, na consciência que tem de si mesmo, é, também, capaz de
discernir as discrepâncias da ordem social. Sou gaúcho, ele diz, o que significa
dar conta das lides campeiras; saber-se orientar nos campos; suportar, sem
queixas, as adversidades; não se dar por vencido; não ter medo.
Renega da autoridade e a
enfrenta: nada o faz recuar, ninguém lhe põe o pé encima; entra e sai do perigo
sem que a dificuldade o espante; não se afasta de seu caminho ainda que em
sentido contrário venham degolando. E
por mais que um rigor o atormente, permanece convicto de que não
deve baixar a cabeça / nunca por nenhum motivo.
Ao contar seus males, José Hernández
não se distancia da abundante vertente literária que, no continente, opõe
opressores e oprimidos. No entanto, essa dicotomia constatada se apresenta,
muitas vezes, como que imune à transformações; como se um acordo existisse e
cada um, o que detém o poder de oprimir e o que à opressão se submete,
aceitasse o papel que lhe compete; como se tal dicotomia fosse incapaz de
deixar de existir. Porém, o que
diferencia Martin Fierro de muitos dos personagens
latino-americanos é essa visão de mundo
que lhe orienta a rebeldia na busca de
resguardar a dignidade a qual julga ter direito.
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