domingo, 5 de setembro de 2004

Chamam de rebeldia


            Em 1872 era publicado Martin Fierro, considerado um clássico da Literatura Hispano-americana e, sobre o qual nunca é demais retornar. Seu protagonista que dá o nome à obra, -  gaúcho perseguido pelo seu modo de vida, em desacordo com o que preconizavam, então, os dirigentes  do país – possui uma incontestável estatura heróica e se converte, diz Arturo Rioseco num símbolo de força moral dentro da história Argentina. Segundo Jean Franco (História da Literatura Hispanoamericana, Barcelona, Ariel,1975), no entanto, durante muitos anos, a sua popularidade entre as massas foi considerada, pelas minorias cultas, quase como demonstração de inferioridade. Porém, no começo do século XX, as opiniões foram mudando. Assim, para o poeta  e  historiador  Ricardo Rojas é  o supremo poema nacional. Por sua vez, Robert Bazin, o francês autor de História de la Literatura Americana en lengua espanhola (Buenos Aires, Nova, 1958), considera que em Martin Fierro  se mesclam a epopéia e a lírica, o patético, o didático e o pitoresco e, principalmente o desejo de protesto que norteia o poema.

            José Hernández, seu autor,  foi viver no campo quando tinha doze anos de idade. Nos anos que se seguiram, conheceu os gaúchos com quem compartilhou  os trabalhos de  domador, os perigos de uma vida em plena natureza,   a força para atravessar rios e se orientar nos imensos desertos,  a coragem para enfrentar  as provocações e as brigas. Seu irmão assim sintetiza a transformação que nele se operou: José se fez gaúcho.  E, assim, pode constatar a situação em que viviam esses homens do campo  que as injustiças e as perseguições transformavam em bandido,

            Em Martin Fierro, José Hernández dessas injustiças e perseguições quer deixar testemunho. Na primeira pessoa, seu personagem relata a vida de agruras – o destino de todos os gaúchos – que levou a partir do momento em que se deixa apanhar pelo serviço militar e é levado para a guarnição da fronteira onde a luta contra os índios é feita sem armas, onde constata a corrupção dos superiores, onde jamais lhe pagam o soldo. Razões que o levam a desertar. Porém, ao chegar de volta a seus campos, encontra só uma tapera. Desesperado, busca consolo numa pulperia, briga, mata e perseguido, passa a  viver se escondendo da polícia. Até que, cercado por muitos soldados,  sua valentia, ao enfrentá-los,  leva um daqueles contra os quais se defende, o sargento Cruz, a ajudá-lo na luta e a desbaratar seus perseguidores. Reconhecendo-se  companheiros de desgraça, decidem abandonar os civilizados, atravessar as fronteiras e se unir aos índios porque lá, os caciques agasalham o cristão. O poema termina com o autor assumindo  a  sua autoria, dizendo que relatou a seu modo  Males que conocen todos / pero que naides contó,  dois versos, graficamente distintos dos demais,  em que não deixa dúvidas sobre a sua intenção.

. Porque a autoridade que decide do destino dos gaúchos,  instaurando a lei da vagabundagem e exigindo-lhes submissão, confunde poder e abuso de poder e se caracteriza pela ladroagem e pelo arbítrio. Martin Fierro,  na consciência  que tem de si mesmo, é, também, capaz de discernir as discrepâncias da ordem social. Sou gaúcho, ele diz, o que significa dar conta das lides campeiras; saber-se orientar nos campos; suportar, sem queixas, as adversidades; não se dar por vencido;  não ter medo.  Renega da autoridade  e a enfrenta: nada o faz recuar, ninguém lhe põe o pé encima; entra e sai do perigo sem que a dificuldade o espante; não se afasta de seu caminho ainda que em sentido contrário venham degolando. E por mais que um rigor o atormente, permanece convicto de que  não deve baixar a cabeça / nunca por nenhum motivo.

            Ao contar seus males, José Hernández não se distancia da abundante vertente literária que, no continente, opõe opressores e oprimidos. No entanto, essa dicotomia constatada se apresenta, muitas vezes, como que imune à transformações; como se um acordo existisse e cada um, o que detém o poder de oprimir e o que à opressão se submete, aceitasse o papel que lhe compete; como se tal dicotomia fosse incapaz de deixar de existir. Porém, o que  diferencia Martin Fierro de muitos dos personagens latino-americanos  é essa visão de mundo que lhe orienta a rebeldia  na busca de resguardar a dignidade a qual julga ter direito.

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