domingo, 12 de setembro de 2004

A brasileira


            Em junho de 1927, para assumir suas funções de Cônsul do Chile, em Rangum, capital da Birmânia, Pablo Neruda parte de Buenos Aires para a Europa a bordo de um barco alemão, o “Baden”. No seu livro de memórias, Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974), lembra essa viagem:  como, de repente,  ele se transformou, deixando  de se interessar pelos outros  passageiros  e pelo oceano Atlântico, que, então, se lhe tornou  monótono para somente contemplar os olhos escuros e largos de uma jovem brasileira, infinitamente brasileira que subiu ao barco no Rio de Janeiro com seus pais e dois irmãos. Além de se referir ao companheiro de viagem, Álvaro Hinojosa ( para viajarem juntos, trocara a passagem de primeira classe por duas de terceira), de suas fórmulas de conquista amorosa  (era um ativo tenório) e de mencionar, rapidamente, os demais passageiros ( imigrantes portugueses e galegos e os outros, sobretudo alemães que voltavam das minas ou das fábricas da América Latina)  nada mais diz dessa viagem que terminou em Lisboa . Na crônica, “Imagen viajera” – a primeira de uma série sobre a viagem , enviada para o jornal  La Nación, conforme mencionam Aída Figueiroa de Insunsa e Edmondo Olivares Briones  no livro Mi amigo Pablo  e que faz parte de Para nacer he nacido (Barcelona, Seix Barral, 1977) -  a jovem brasileira tem uma presença maior. O texto se inicia com uma notação de tempo: é um passado bem recente, de apenas alguns dias para, então,  descrever a baía de Santos, exuberante na sua natureza tropical e em duas breves frases, relatar que ali embarcou uma família brasileira composta do pai, da mãe e de uma jovem muito bela. Logo, lhe fará um cuidadoso retrato:  Boa parte de seu rosto o ocupam os olhos, absortos, negruscos, dirigidos sem pressa, com abundância profunda de fulgor. Sob a testa pálida, fazem notar sua presença num adejo constante. Sua boca é grande, porque seus dentes querem brilhar na luz do mar do alto de seu  riso. Linda morena, compadre. Seu ser começa em dois pés diminutos e sobe pelas pernas de forma sensual, cuja madurez  o olhar quisera morder.  Volta a falar da viagem, da atmosfera tropical que invade o barco. E da bela jovem: Marinech, a brasileira, ocupa todas as tardes a sua cadeira de convés, diante do crepúsculo. Seu rosto levemente se tinge com as tintas do firmamento, as vezes sorri.  No parágrafo seguinte, completa a descrição: Marinech é  minha amiga. Conversa na melosa língua portuguesa e lhe dá  encanto seu idioma de brinquedo. Ela é altiva e pálida, não mostra preferência por  ninguém. Seu olhar, carregado de matéria sombria, está fugindo.  Outra vez, Pablo Neruda torna à natureza nessa hora do crepúsculo em que a invadem as sombras da noite. Sobre a brasileira nada mais é dito.

            Para nacer he nacido é um livro feito de textos de Pablo Neruda reunidos por Matilde Urrutia e Miguel Otero Silva, em 1977, três anos depois de terem sido publicadas as suas memórias e que lhe são, muitas vezes, um complemento. Num  livro e noutro, dois dados sobre  a brasileira não coincidem: o porto de embarque e a composição de sua  família. Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda diz que a jovem embarcou no Rio de Janeiro com seus pais e dois irmãos; em Para nacer he nacido que o embarque foi em Santos  e apenas ela com seus pais.


            Instigante, no entanto, é o texto que publicou em 16 de fevereiro de 1962 em O CRUZEIRO Internacional e que faz parte da série “Las vidas del poeta. Memorias y recuerdos de Pablo Neruda”. Lembrando a sua viagem no “Baden”, ele conta:De minha parte, a viagem de repente se transformou e deixei de ver os passageiros que protestavam ruidosamente pelo eterno menu de “Kartoffee”(sic), deixei de ver o mundo e o monótono Atlântico para somente contemplar os olhos escuros e largos de uma jovem brasileira, infinitamente engraçada, que subiu ao barco no Rio de Janeiro com seus pais e seus dois irmãos,  Trata-se, quase do mesmo texto que fará parte de Confieso que he vivido. Dele se diferencia, somente,  pela mudança de uma palavra: no texto de 1962, atribui à brasileira ser infinitamente engraçada;  no texto desse livro, o adjetivo engraçada é substituído pelo adjetivo brasileña o que irá ocasionar um pleonasmo sem dúvida curioso:  uma jovem brasileira, infinitamente brasileira pois, se na primeira vez o sentido  de nacionalidade é inequívoco, na segunda,  talvez,   elogioso,  não está evidente o significado que desejou  lhe dar.

            Porém, o mais intrigante é a presença de uma  breve seqüência que encerra o texto de 1962.  Não faz parte daquele de 1927, quando de sua viagem  e, tampouco das memórias, escritas anos mais tarde que resultaram em Confieso que he vivido. A razão de não ter mencionado essa troca de olhares em 1927 e a razão de ter eliminado a referência que faz a essa troca de olhares no texto que reaproveitou anos depois, parecem fadadas a permanecerem desconhecidas.  Um breve e encantador mistério que só a efêmera emoção alimenta: Aqueles olhos escuros que só ao passar  se enredaram com os meus, duraram muito tempo nas minhas lembranças.

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