Em
junho de 1927, para assumir suas funções de Cônsul do Chile, em Rangum, capital
da Birmânia, Pablo Neruda parte de Buenos Aires para a Europa a bordo de um
barco alemão, o “Baden”. No seu livro de memórias, Confieso que he vivido (Barcelona,
Seix Barral, 1974), lembra essa viagem:
como, de repente, ele se
transformou, deixando de se interessar
pelos outros passageiros e pelo oceano Atlântico, que, então, se lhe
tornou monótono para somente contemplar os olhos escuros e
largos de uma jovem brasileira, infinitamente brasileira que subiu ao barco no
Rio de Janeiro com seus pais e dois
irmãos. Além de se referir ao companheiro de viagem, Álvaro Hinojosa ( para
viajarem juntos, trocara a passagem de primeira classe por duas de terceira),
de suas fórmulas de conquista amorosa (era um ativo tenório) e de mencionar,
rapidamente, os demais passageiros ( imigrantes portugueses e galegos e os outros,
sobretudo alemães que voltavam das minas ou das fábricas da América
Latina) nada mais diz dessa viagem que
terminou em Lisboa . Na crônica, “Imagen viajera” – a primeira de uma série
sobre a viagem , enviada para o jornal La
Nación, conforme mencionam Aída Figueiroa de Insunsa e Edmondo Olivares
Briones no livro Mi amigo Pablo e que faz parte de Para nacer he nacido (Barcelona,
Seix Barral, 1977) - a jovem brasileira
tem uma presença maior. O texto se inicia com uma notação de tempo: é um passado
bem recente, de apenas alguns dias para, então,
descrever a baía de Santos, exuberante na sua natureza tropical e em
duas breves frases, relatar que ali embarcou uma família brasileira composta do
pai, da mãe e de uma jovem muito bela. Logo, lhe fará um cuidadoso retrato: Boa
parte de seu rosto o ocupam os olhos, absortos, negruscos, dirigidos sem
pressa, com abundância profunda de fulgor. Sob a testa pálida, fazem notar sua
presença num adejo constante. Sua boca é grande, porque seus dentes querem brilhar
na luz do mar do alto de seu riso. Linda
morena, compadre. Seu ser começa em dois pés diminutos e sobe pelas pernas de
forma sensual, cuja madurez o olhar
quisera morder. Volta a falar da
viagem, da atmosfera tropical que invade o barco. E da bela jovem: Marinech, a brasileira, ocupa todas as
tardes a sua cadeira de convés, diante do crepúsculo. Seu rosto levemente se tinge com as tintas do firmamento, as
vezes sorri. No parágrafo seguinte,
completa a descrição: Marinech é minha amiga. Conversa na melosa língua
portuguesa e lhe dá encanto seu idioma
de brinquedo. Ela é altiva e pálida, não mostra preferência por ninguém. Seu olhar, carregado de matéria
sombria, está fugindo. Outra vez,
Pablo Neruda torna à natureza nessa hora do crepúsculo em que a invadem as
sombras da noite. Sobre a brasileira nada mais é dito.
Para
nacer he nacido é um livro feito de textos de
Pablo Neruda reunidos por Matilde Urrutia e Miguel Otero Silva, em 1977, três
anos depois de terem sido publicadas as suas memórias e que lhe são, muitas
vezes, um complemento. Num livro e
noutro, dois dados sobre a brasileira
não coincidem: o porto de embarque e a composição de sua família. Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda diz que a jovem embarcou no Rio de
Janeiro com seus pais e dois irmãos;
em Para nacer he nacido que o embarque foi em Santos e apenas ela com seus pais.
Instigante,
no entanto, é o texto que publicou em 16 de fevereiro de 1962 em O CRUZEIRO
Internacional e que faz parte da série “Las vidas del poeta. Memorias y recuerdos de Pablo
Neruda”. Lembrando a sua viagem no “Baden”, ele conta:De minha parte, a viagem de repente se
transformou e deixei de ver os passageiros que protestavam ruidosamente pelo
eterno menu de “Kartoffee”(sic), deixei de ver o mundo e o monótono Atlântico
para somente contemplar os olhos escuros e largos de uma jovem brasileira,
infinitamente engraçada, que subiu ao barco no Rio de Janeiro com seus pais e seus dois irmãos, Trata-se, quase do mesmo texto que fará parte
de Confieso que he vivido. Dele se diferencia, somente, pela mudança de uma palavra: no texto de
1962, atribui à brasileira ser infinitamente engraçada; no texto desse livro, o adjetivo engraçada é substituído pelo adjetivo brasileña o que irá ocasionar um pleonasmo
sem dúvida curioso: uma jovem brasileira,
infinitamente brasileira pois, se na primeira vez o sentido de nacionalidade é inequívoco, na
segunda, talvez, elogioso,
não está evidente o significado que desejou lhe dar.
Porém,
o mais intrigante é a presença de uma
breve seqüência que encerra o texto de 1962. Não faz parte daquele de 1927, quando de sua
viagem e, tampouco das memórias, escritas
anos mais tarde que resultaram em Confieso que he vivido. A razão de não
ter mencionado essa troca de olhares em 1927 e a razão de ter eliminado a
referência que faz a essa troca de olhares no texto que reaproveitou anos
depois, parecem fadadas a permanecerem desconhecidas. Um breve e encantador mistério que só a
efêmera emoção alimenta: Aqueles olhos
escuros que só ao passar se enredaram
com os meus, duraram muito tempo nas minhas lembranças.

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