domingo, 15 de agosto de 2004

O livro das respostas


            Na capa, os Andes e o Morro do Careca – fotomontagem de Marcelo Mariz – numa proximidade surpreendente. Diluindo as fronteiras, entre as montanhas nevadas e o morro tropical, o título do livro e seu sub-título: O livro das respostas (em face do Libro de las preguntas de Pablo Neruda). Respostas estas de Diógenes da Cunha Lima que, deixando-se impregnar, diz Edon Nery da Fonseca, no prefácio do livro, pela atmosfera de sonho e magia que transmite Pablo Neruda no seu Libro de las preguntas, se mostram verdadeiras pequenas maravilhas. 

            Diógenes da Cunha Lima, o poeta de Lua 4 vezes Sol, Instrumento Dúctil, Corpo breve, Natal, Poemas e Canções, Poemas versus prelúdios, Pássaros da memória, neste Livro das respostas , partindo do verso de Pablo Neruda e nele se entrelaçando, deixa constância de poemas  tão fascinantes como aqueles que o desencadeiam. Porque, se nos versos de Pablo Neruda se percebem caminhos já trilhados – a natureza, as preocupações políticas, algo de troça e o grande amor à vida – nessa longa e intensa vida que foi a sua,  não surpreendem as reiteradas menções ao outono. Sim, o não serem marcadas pela melancolia de quem já muito viveu mas pela alegria e pelo fantasioso matizados de exuberantes amarelos. E, assim, resultam as respostas – cada poema antecedido de um travessão – que lhes dá Diógenes da Cunha Lima: submissas à alegria, ao lirismo, à sabedoria e ao sorriso compartido.

Pergunta Pablo Neruda:  Te hás dado cuenta que el otoño / es como una vaca amarilla? E  o poeta brasileiro responde sem peias: - Percebi. Pelo leite derramado. Quando o poema se enriquece com as palavras pájaro amarillo, limones, nido (Cuál es el pájaro amarillo / que llena el nido de limones?) a resposta se aprofunda no lirismo:  -O pássaro infiel. Por vezes, as respostas precisam das perguntas. Em -Estão em potes dourados / de melaço nos engenhos, os versos feitos de esplêndida combinação de palavras necessitam da pergunta: Donde están los nombres aquellos /Dulce como torta de antaño? Outras vezes, cobram vida, independentes das perguntas que a originaram. Em Si se termina el amarillo / con que vamos a hacer el pan?, Pablo Neruda relaciona cor e alimento, constituindo-se a ausência de lógica a substância poética. Na reposta de Diógenes da Cunha Silva, - Faremos o pão da terra. Um dia vamos ser seu pão, a relação encontra respaldo lógico na tradição (a terra dá frutos, o trigo é fruto da terra) como, igualmente, o encontra nesse voltar à terra (e se tornar seu alimento), quando  o poético emerge, então, num significado maior e mais profundo. Há o caso em que a pergunta parece não ter resposta (Se alejarán em el otoño / las golondrinas de la luna?), mas o poeta brasileiro a encontra e convicto, informa: - No outono as andorinhas / farão ninhos inaugurais /  no outro lado da lua. Também o caso em que, conservando as três palavras chaves da pergunta, lhes muda a função sintática, originando uma situação diferente,  ainda  que, sem se  afastar da idéia presente na pergunta de Pablo Neruda: (Los peluqueros del otoño / despeinaron los crisântemos?: - De repente, em multidão / os crisântemos / despentearam o outono). Sem mencionar o outono mas, ainda assim, a lembrá-lo na referência à folha amarela, (Por qué no dar uma medalla / a la primera hoja de oro?), Pablo Neruda lhe confere o valor definitivo do metal precioso que a torna, primícia que é,  merecedora do prêmio.  Diógenes da Cunha Lima, ao responder, combina três palavras da mesma rede de significados-  desdouro, dourado, ouro – que nos seus versos se opõem (- Para não haver desdouro: o dourado despreza o ouro) e lhe confere uma razão que o sentido lúdico do poema de Pablo Neruda não fazia prever. E, ricamente expressiva, a pergunta  Por qué se suicidan  las hojas  amarillas?, na melancólica relação entre o declínio da vida e um eventual desejo de auto aniquilamento. Dá origem a não menos rica e expressiva resposta de Diógenes da Cunha Lima: -Com saudades de Van Gogh em que junto à palavra saudade, tida por intraduzível, se alinham as reminiscências dos tons de amarelo presentes nos quadros de Van Gogh, e a sua auto-mutilação e posterior suicídio.

            Num país de imensas dimensões e em que as elites (ou os que assim se consideram) voltam as costas para os países limítrofes, ignorando–lhes a expressão, surge como algo de  especial significado esta relação, feita de palavras, que um poeta do nordeste brasileiro instaura com um poeta do extremo sul do Continente. Precioso diálogo que prescinde de cenário e da presença e ignora o tempo e faz desabrochar inesperadas leituras num itinerário que os poemas de Diógenes da Cunha Lima fazem plenos de encantamento.

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