domingo, 22 de agosto de 2004

Excentricidades


  A narrativa de O Louco do Cati, publicado em 1942 pela Globo de Porto Alegre e no ano passado pela Planeta é linear e cronológica. Ocorrências, imprevistos, soluções vão acontecendo e levando o Louco do Cati  a uma vivência compartilhada com pessoas cujos universos pouco se aproximam:o das prisões, o da pensão no Rio de Janeiro, o da família que o albergou em Lages, o do professor de Medicina cuja diagnóstico lhe permitiu sair da cadeia; o da velha senhora em cuja casa pernoitou, em São Paulo.

 Nas relações que se estabelecem em cada um desses pequenos universos, os diálogos são sempre, muito concisos e se atendo às ações e às preocupações do momento. Duas vezes, no entanto, neles se inscrevem relatos independentes do núcleo central do romance.

            No capítulo “A velha morreu”,  um deles. Em Lages, a dona da casa onde se hospedava o Louco do Cati quer visitar a vizinha doente. O narrador, onisciente, lhe conhece o passado e o futuro, dizendo que a velha que ia morrer fora uma moça feia, destinada a ser solteirona e, na idade em que deveria ser feliz, era vítima de palavras trocistas das pessoas. E mais: seu pai havia sido um pequeno fazendeiro que possuía  uma originalidade: não comia o dia inteiro. Trabalhava, mateava, pitava e ao anoitecer, deitava. A mulher levava para ele tudo o que deveria ter comido durante o dia pela manhã, no almoço, à tarde e à noite. Comia tudo, fumava outro cigarro e dormia. Chamava a filha de Rosinha.

Entrelaçando esse comportamento original e o chamar a filha pelo diminutivo de seu nome com a melancolia de uma vida que se apaga sem ter tido alegrias, o narrador como que ameniza o desgaste do tempo: Rosinha torna-se Rosa e, enfim, a mulher-velha que vai morrer.Um lirismo apenas esboçado como o que está presente no ato solidário da vizinha que, se aprontando para acompanhar a família, se lembra de levar o lenço porque talvez tivesse que chorar.  .

            O outro relato estranho ao desenrolar do romance aparece no capítulo “Três almoços (continuação)”,  referido não pelo narrador mas por Norberto, o companheiro do Louco do Cati. No Rio de Janeiro,após ter saído da cadeia, consta que se encontra sem recursos. Decide, embora a contra-gosto, pedir ajuda (habilmente sugerida mas não mencionada às claras no  romance) a Perdigão, um velho amigo do pai que a nega por não estar prevenido ( o que leva a crer tratar-se, efetivamente,  de um pedido de dinheiro). Norberto conta aos amigos, mais tarde, a excentricidade do pai desse Perdigão: costumava guardar o doce em ...urinóis. Tal prática suscitou o interesse de seu ouvintes e, então, continuou contando que esse Perdigão tinha uma loja e retirava os urinóis da  prateleira e mandava por no guarda-louça para servir o doce.  Brilhando de limpos ( ele era também muito escrupuloso) iam para a mesa, principalmente quando havia gente de fora para almoçar. Era  um trocista?, pergunta o interlocutor, querendo entender. Ninguém entendia, explicou Norberto, acrescentando que seu pai o conhecera: um sujeito maldoso, usurário, sombrio. Adjetivos que, talvez, possam, também, ser aplicados ao filho, completando-lhe o perfil: dono de cartório, cara escanhoada, fria. Lembra de sua mocidade,  não, porém, do primeiro nome do velho amigo e, com a cara fechada recusa ao filho desse amigo, o auxílio pedido. Presença muito breve, dada a conhecer pelas palavras de Norberto, constitui-se uma exceção entre os inúmeros tipos que formam a preciosa galeria de personagens de Dyonélio Machado, quase sempre movidos pela vontade de ajudar.

            Que,  por coincidência, tal Perdigão  seja dono de um cartório – sinecura que, usualmente, então, era dada aos amigos do Poder – talvez  se constitua  algo  de somenos  importância.

 

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