domingo, 29 de agosto de 2004

Nanci e Ecila


  A narrativa de O Louco do Cati, publicado em 1942 pela Globo de Porto Alegre e no ano passado pela Planeta é linear e cronológica. Ocorrências, imprevistos, soluções vão acontecendo e levando o Louco do Cati  a uma vivência compartilhada com pessoas cujos universos pouco se aproximam:o das prisões, o da pensão no Rio de Janeiro, o da família que o albergou em Lages, o do professor de Medicina cuja diagnóstico lhe permitiu sair da cadeia; o da velha senhora em cuja casa pernoitou, em São Paulo.

 

            A sua aventura nessa viagem em que sempre, aleatoriamente, se ve conduzido pelos que se arvoram em seus responsáveis, é relatada numa sucessão de episódios. Núcleos narrativos, feitos  de alguma notação de cenário; de personagens elaborados a partir de um gesto, de uma frase, de um detalhe físico ou do trajar, de uma atitude; de uma ação que por si só se completa. Eles  muito pouco se relacionam com os que o antecedem ou com os que se lhe seguem. Assim, o primeiro episódio da viagem até a praia que se encerra no capítulo  “O mar”, como se fosse o fim de um espetáculo teatral: Algum tempo depois eles eram vistos desaparecendo nas dobras oblíquas dos cômoros, como através uns bastidores. Assim, as viagens pelo litoral, o episódio da prisão em Araranguá; a viagem de navio para o Rio de Janeiro, a permanência na prisão, os dias passados  na cidade, já em liberdade. E assim, sempre, ao longo do romance.
 
            Embora o fio condutor do relato seja a figura de o Louco do Cati, nesses pequenos universos em que ele, sucessivamente  se move, se  introduzem  momentos  de outras vidas que não fazem parte da sua aventura  mas a ela, efemeramente, se unem.

            No capítulo “Vida Nova”, já em liberdade no Rio de Janeiro, o Louco do Cati e seu companheiro Norberto, diante das dificuldades que devem enfrentar, despertam a simpatia de Lopo, um rapaz alagoano que encontram num café da praça Tiradentes. Prontifica-se a arrumar uma roupa para o Louco do Cati e a solucionar-lhes a questão da moradia pois a pensão onde estavam  lhes saía caro. -Precisam morar comigo, ele decide, disposto a recebê-los no quarto em que mora, à revelia da dona da casa. Combinaram jeitos de entrar em casa sem serem vistos, à noite; depois, a criada informa que a dona da casa já andava desconfiada e eles se revezam para dormir. Lopo, durante a noite,  e os dois durante o dia. Até a hora em que é chamado para ir falar com a dona da casa, quando ele volta com o convite para almoçar. Então,  explica o que estava acontecendo. A dona da casa precisava de ajuda no caso da filha mais velha e ele se pôs à disposição. Já com um plano pois a delegacia ficava perto e, juntos, ele, Norberto e o Louco do Cati, foram para lá. Lopo deu o nome do rapaz, seu telefone, e muitas sugestões ao comissário que os atendeu pois o delegado só trabalhava à tarde. E à tarde, ouvido o rapaz acusado e seu amigo e, tendo já sido investigado o passado da moça, tido por condenável,  é em seu detrimento, a conclusão do delegado. Não consta como foi feita essa investigação, tampouco tenha sido a moça ouvida ou posta em dúvida a veracidade das afirmações do rapaz.

            Na quarta parte do romance, o Louco do Cati já está em Lages, hospedado na casa do motorista de caminhão que o levou para o Sul. A família e uns amigos programam um pique-nique perto da cascata. Para ajudar no preparo do churrasco chega um morador dali perto. Em dado momento, a conversa na roda dos homens só se refere  ao caso de sua filha. O rapaz lhe fizera mal e agora não queria reparar o ato. A queixa na polícia fora feita fora da época ( quase sempre acontece isso, diz alguém) e, assim, o casamento reparador já  fora de cogitação o que induz o pai da moça a pensar numa indenização em dinheiro: Pois então o Djalma esteve com a rapariga e não casa, não vai preso, não lhe acontece nada?... Não podia ser [...] – Até cinco mil réis me deixa satisfeito. Mas eles tem que pagar alguma coisa.

            Embora nos dois casos, o Louco do Cati estivesse presente (sem dúvida, na Delegacia pois,  duas vezes, é mencionado o olhar do comissário fixo nele; e, presumivelmente, no pique-nique, , ainda que tal não seja mencionado, fazendo parte da roda dos homens)  não há uma  relação evidente entre ele e esses dois dramas que lhe estão próximos. E  se assemelham ao expressar – seja na cidade grande, seja na zona rural – o exercício de uma prática  unilateral já conhecida quanto às responsabilidades masculinas que a lei parece prever  em face de determinadas situações de relacionamento amoroso. Em ambos os casos, os pedidos de reparação feitos pelas partes que se acreditam prejudicadas, caem no vazio. São julgados improcedentes pela autoridade,  ou por acatar somente um dos lados envolvidos ou por se basear na prescrição do tempo a invalidar a pretensão.

            Se em todos os obstáculos enfrentados pelo Louco do Cati ele foi ajudado, num testemunho constante de solidariedade, nestes dois episódios se impõe a negação – passivamente aceita -  de um real ou possível direito pretendido. A sua viagem  continua transcorrendo  e para trás ficam  Nanci e Ecila – assim se chamam as moças –  à mercê do destino que as leis dos homens determinam.

domingo, 22 de agosto de 2004

Excentricidades


  A narrativa de O Louco do Cati, publicado em 1942 pela Globo de Porto Alegre e no ano passado pela Planeta é linear e cronológica. Ocorrências, imprevistos, soluções vão acontecendo e levando o Louco do Cati  a uma vivência compartilhada com pessoas cujos universos pouco se aproximam:o das prisões, o da pensão no Rio de Janeiro, o da família que o albergou em Lages, o do professor de Medicina cuja diagnóstico lhe permitiu sair da cadeia; o da velha senhora em cuja casa pernoitou, em São Paulo.

 Nas relações que se estabelecem em cada um desses pequenos universos, os diálogos são sempre, muito concisos e se atendo às ações e às preocupações do momento. Duas vezes, no entanto, neles se inscrevem relatos independentes do núcleo central do romance.

            No capítulo “A velha morreu”,  um deles. Em Lages, a dona da casa onde se hospedava o Louco do Cati quer visitar a vizinha doente. O narrador, onisciente, lhe conhece o passado e o futuro, dizendo que a velha que ia morrer fora uma moça feia, destinada a ser solteirona e, na idade em que deveria ser feliz, era vítima de palavras trocistas das pessoas. E mais: seu pai havia sido um pequeno fazendeiro que possuía  uma originalidade: não comia o dia inteiro. Trabalhava, mateava, pitava e ao anoitecer, deitava. A mulher levava para ele tudo o que deveria ter comido durante o dia pela manhã, no almoço, à tarde e à noite. Comia tudo, fumava outro cigarro e dormia. Chamava a filha de Rosinha.

Entrelaçando esse comportamento original e o chamar a filha pelo diminutivo de seu nome com a melancolia de uma vida que se apaga sem ter tido alegrias, o narrador como que ameniza o desgaste do tempo: Rosinha torna-se Rosa e, enfim, a mulher-velha que vai morrer.Um lirismo apenas esboçado como o que está presente no ato solidário da vizinha que, se aprontando para acompanhar a família, se lembra de levar o lenço porque talvez tivesse que chorar.  .

            O outro relato estranho ao desenrolar do romance aparece no capítulo “Três almoços (continuação)”,  referido não pelo narrador mas por Norberto, o companheiro do Louco do Cati. No Rio de Janeiro,após ter saído da cadeia, consta que se encontra sem recursos. Decide, embora a contra-gosto, pedir ajuda (habilmente sugerida mas não mencionada às claras no  romance) a Perdigão, um velho amigo do pai que a nega por não estar prevenido ( o que leva a crer tratar-se, efetivamente,  de um pedido de dinheiro). Norberto conta aos amigos, mais tarde, a excentricidade do pai desse Perdigão: costumava guardar o doce em ...urinóis. Tal prática suscitou o interesse de seu ouvintes e, então, continuou contando que esse Perdigão tinha uma loja e retirava os urinóis da  prateleira e mandava por no guarda-louça para servir o doce.  Brilhando de limpos ( ele era também muito escrupuloso) iam para a mesa, principalmente quando havia gente de fora para almoçar. Era  um trocista?, pergunta o interlocutor, querendo entender. Ninguém entendia, explicou Norberto, acrescentando que seu pai o conhecera: um sujeito maldoso, usurário, sombrio. Adjetivos que, talvez, possam, também, ser aplicados ao filho, completando-lhe o perfil: dono de cartório, cara escanhoada, fria. Lembra de sua mocidade,  não, porém, do primeiro nome do velho amigo e, com a cara fechada recusa ao filho desse amigo, o auxílio pedido. Presença muito breve, dada a conhecer pelas palavras de Norberto, constitui-se uma exceção entre os inúmeros tipos que formam a preciosa galeria de personagens de Dyonélio Machado, quase sempre movidos pela vontade de ajudar.

            Que,  por coincidência, tal Perdigão  seja dono de um cartório – sinecura que, usualmente, então, era dada aos amigos do Poder – talvez  se constitua  algo  de somenos  importância.

 

domingo, 15 de agosto de 2004

O livro das respostas


            Na capa, os Andes e o Morro do Careca – fotomontagem de Marcelo Mariz – numa proximidade surpreendente. Diluindo as fronteiras, entre as montanhas nevadas e o morro tropical, o título do livro e seu sub-título: O livro das respostas (em face do Libro de las preguntas de Pablo Neruda). Respostas estas de Diógenes da Cunha Lima que, deixando-se impregnar, diz Edon Nery da Fonseca, no prefácio do livro, pela atmosfera de sonho e magia que transmite Pablo Neruda no seu Libro de las preguntas, se mostram verdadeiras pequenas maravilhas. 

            Diógenes da Cunha Lima, o poeta de Lua 4 vezes Sol, Instrumento Dúctil, Corpo breve, Natal, Poemas e Canções, Poemas versus prelúdios, Pássaros da memória, neste Livro das respostas , partindo do verso de Pablo Neruda e nele se entrelaçando, deixa constância de poemas  tão fascinantes como aqueles que o desencadeiam. Porque, se nos versos de Pablo Neruda se percebem caminhos já trilhados – a natureza, as preocupações políticas, algo de troça e o grande amor à vida – nessa longa e intensa vida que foi a sua,  não surpreendem as reiteradas menções ao outono. Sim, o não serem marcadas pela melancolia de quem já muito viveu mas pela alegria e pelo fantasioso matizados de exuberantes amarelos. E, assim, resultam as respostas – cada poema antecedido de um travessão – que lhes dá Diógenes da Cunha Lima: submissas à alegria, ao lirismo, à sabedoria e ao sorriso compartido.

Pergunta Pablo Neruda:  Te hás dado cuenta que el otoño / es como una vaca amarilla? E  o poeta brasileiro responde sem peias: - Percebi. Pelo leite derramado. Quando o poema se enriquece com as palavras pájaro amarillo, limones, nido (Cuál es el pájaro amarillo / que llena el nido de limones?) a resposta se aprofunda no lirismo:  -O pássaro infiel. Por vezes, as respostas precisam das perguntas. Em -Estão em potes dourados / de melaço nos engenhos, os versos feitos de esplêndida combinação de palavras necessitam da pergunta: Donde están los nombres aquellos /Dulce como torta de antaño? Outras vezes, cobram vida, independentes das perguntas que a originaram. Em Si se termina el amarillo / con que vamos a hacer el pan?, Pablo Neruda relaciona cor e alimento, constituindo-se a ausência de lógica a substância poética. Na reposta de Diógenes da Cunha Silva, - Faremos o pão da terra. Um dia vamos ser seu pão, a relação encontra respaldo lógico na tradição (a terra dá frutos, o trigo é fruto da terra) como, igualmente, o encontra nesse voltar à terra (e se tornar seu alimento), quando  o poético emerge, então, num significado maior e mais profundo. Há o caso em que a pergunta parece não ter resposta (Se alejarán em el otoño / las golondrinas de la luna?), mas o poeta brasileiro a encontra e convicto, informa: - No outono as andorinhas / farão ninhos inaugurais /  no outro lado da lua. Também o caso em que, conservando as três palavras chaves da pergunta, lhes muda a função sintática, originando uma situação diferente,  ainda  que, sem se  afastar da idéia presente na pergunta de Pablo Neruda: (Los peluqueros del otoño / despeinaron los crisântemos?: - De repente, em multidão / os crisântemos / despentearam o outono). Sem mencionar o outono mas, ainda assim, a lembrá-lo na referência à folha amarela, (Por qué no dar uma medalla / a la primera hoja de oro?), Pablo Neruda lhe confere o valor definitivo do metal precioso que a torna, primícia que é,  merecedora do prêmio.  Diógenes da Cunha Lima, ao responder, combina três palavras da mesma rede de significados-  desdouro, dourado, ouro – que nos seus versos se opõem (- Para não haver desdouro: o dourado despreza o ouro) e lhe confere uma razão que o sentido lúdico do poema de Pablo Neruda não fazia prever. E, ricamente expressiva, a pergunta  Por qué se suicidan  las hojas  amarillas?, na melancólica relação entre o declínio da vida e um eventual desejo de auto aniquilamento. Dá origem a não menos rica e expressiva resposta de Diógenes da Cunha Lima: -Com saudades de Van Gogh em que junto à palavra saudade, tida por intraduzível, se alinham as reminiscências dos tons de amarelo presentes nos quadros de Van Gogh, e a sua auto-mutilação e posterior suicídio.

            Num país de imensas dimensões e em que as elites (ou os que assim se consideram) voltam as costas para os países limítrofes, ignorando–lhes a expressão, surge como algo de  especial significado esta relação, feita de palavras, que um poeta do nordeste brasileiro instaura com um poeta do extremo sul do Continente. Precioso diálogo que prescinde de cenário e da presença e ignora o tempo e faz desabrochar inesperadas leituras num itinerário que os poemas de Diógenes da Cunha Lima fazem plenos de encantamento.

domingo, 8 de agosto de 2004

O Poeta perguntador: Crepusculário


            Pablo Neruda tinha dezenove anos quando publicou seu primeiro livro, Crepusculário. Da emoção de ver seus versos impressos, ele irá contar no capítulo segundo de “Las vidas del Poeta. Recuerdos y memórias”que escreveu para a revista O CRUZEIRO Internacional, em 1962  Livro  ingênuo e sem valor literário, diria, anos depois a Alfredo Cardona Peña que registrou esse testemunho na revista Cuadernos americanos (dezembro de 1950).  No entanto, essa edição, vendida por quinhentos pesos o que, na época, equivalia a menos de cinco dólares e ilustrada por Juan Gandolfo, foi recebida com aplausos pela crítica. Prudente, Pablo Neruda reconhecia, no primeiro poema do livro que a sua voz se erguia em rosas trêmulas,   nem pomposas, nem fragrantes. As primeiras  de seu desconsolado jardim adolescente.  Modéstia em que se entrelaçam a idéia das primícias e o reconhecer-se jovem e triste, revelando como que um pedido de compreensão, dirigido a um irmão caminhante. Interlocutor que o Poeta imagina seu semelhante nessa busca que empreende como, também a mulher (carne e sonho, a menina, a camponesa), a rmã, o pai, o irmão de alma, o amigo, os amigos,   alguém indeterminado, o amor,   ele mesmo, o velho cego, as ponte, o ferro,  o vento do mar , a infelicidade,  Deus. Dirá  de suas inquietações  e perplexidades diante da vida; de sua melancolia frente ao passar do tempo; de suas ânsias e devaneios amorosos;. de sua visão de mundo e preocupação com os seres inanimados; de  seus laços afetivos com o pai e com a irmã, de sua ligação solidária com os assim denominados amigos; de sua admiração pelo que Deus criou. E, muitas vezes, os interpela . Um recurso  - fazer perguntas, dirigir-se a alguém - que irá conservar ao longo dos anos, expressão de seu desejo de  compartilhar  com os demais o que lhe vai na alma. Incertezas e  melancolias próprias dos primeiros anos às quais se acrescem aquelas da criança privada de sua  mãe e  que se sente, irremediavelmente, abandonado, pontilham os poemas de Crepusculario. O Poeta as enuncia  a si mesmo (Para que dizer a canção / de um coração que é tão pequeno?, Que eu com os olhos quebrados sigo um caminho sem fim / Por que dos pensamentos, por que da vida em vão?, Vai-se a poesia das coisas / ou não a pode condensar a vida?); ou, se projetando no outro ([...]cego, que espera da dor?, [...] que podes esperar ?, cego, sempre será teu ontem amanhã?, Aonde vais agora?.Ou, ainda, dividindo a desesperança ( Homens de coração ingênuo / O que mais podemos esperar?). Antropomorfizando as pontes, lastima-lhes o destino de permanecer imóveis quando as paisagens, a vida, o sol, a terra, seguem a viagem sem fim. E as perguntas a elas dirigidas, que o termo maldição introduz, são, na verdade, aquelas que o espanto de viver – e ter consciência de que tudo é transitório  - origina. Alguma vez procura respostas, como no poema “Saudade”, em que busca o significado da palavra, estranha ao espanhol, em dicionários empoeirados e antigos / e em outros livros,  em que pergunta a alguém que, também, a ignora.

E,  se entre as perguntas, existe aquela que jamais será respondida ( Deus – de onde tiraste para acender o céu / este maravilhoso crepúsculo  de cobre?),   outras há, enigmáticas, recônditas, fascinantes  que somente o engenho e arte de um outro poeta poderá responder.

 

             

 

 

domingo, 1 de agosto de 2004

Republiqueta


            É um longo romance de, aproximadamente, quinhentas páginas, publicado, neste ano, pela Girafa de São Paulo: A faca e o mandarim. Seu autor, Sinval Medina, cujo percurso de romancista se iniciou em 1980 com Liberdade condicional (1980) e continuou com Memorial de Santa Cruz (1983), Antes do vendaval (1988) e Tratado da altura das estrelas (1996), O herdeiro das sombras (2001). Neste seu último romance, entrelaça episódios verídicos e ficcionais para narrar o assassinato de José Gomes Pinheiro Machado, em 1915. E o faz na voz de Custódio de Paiva Lima, um jornalista que, na qualidade de repórter, acompanhou o caso, assistindo, inclusive, ao julgamento e que, além disso, privou com o senador, frequentando-lhe a casa. Instado, quase quarenta anos depois, a um testemunho que, evidentemente, também será sobre o que ocorria na capital do país nesses primeiros anos do século o fará de maneira lúcida e mordaz. E que não estará isento   de juízos de valor sobre algumas conhecidas figuras de nossa história que o autor esclarece não compartilhar, assim como, não compartilha  com a maioria das opiniões políticas de Custódio de Paiva Lima. No entanto, elas não são de desdenhar até porque, muitas vezes, se apresentam, abstraindo-se nomes e lugares, como extremamente atuais e pertinentes. Porque o país não mudou os seus caminhos e os políticos – se que assim é possível chamar os que se elegem para legislar em causa própria – que o desservem, continuam a não ver o país como um todo, pouco se importando com as selvas da Amazônia, o sertão do Nordeste ou o pantanal do Mato Grosso. Sobretudo, se abstraindo de uma defesa das riquezas brasileiras, de um estímulo à empresa nacional, de preservar os direitos do trabalhador. Como continua a grassar e não apenas no Rio de Janeiro, como o constata Custódio de Paiva Lima, essa mentalidade que justifica o enriquecimento por quaisquer meios que sejam, sem se submeter a pruridos de consciência ou de vergonha e que orienta a submissão – um crônico estado de espírito – com que os governos do país, quase sempre, se mostram às potências estrangeiras.

Falando de Café Filho, no Catete, imediatamente após a morte de Getúlio Vargas, o jornalista não duvida que o novo governo está doido para escancarar a economia ao imperialismo americano. O petróleo que era nosso vai ser deles. O nosso minério de ferro. As areias monazíticas. E tudo mais. Atitude entreguista que, na verdade, já vinha dos primeiros anos republicanos quando o regime vagou por mares procelosos como nau sem rumo, uma vez que o pregado pelos que idealizavam a república foi usurpado pelos aproveitadores, os adesistas de última hora que, não apenas ajudavam a provocar confusões e escândalos, como não tinham consciência da insensatez dos que, no governo, macaqueavam idéias da Europa e da América do Norte. Era todo um coro de subserviência, principalmente aos banqueiros da City londrina ou de qualquer banco internacional, pois como diz o narrador de A faca e o mandarim, tanto os barões do café como os grandes exportadores estavam convictos de que era bom para o Brasil tudo o que resultasse em lucro para a família Rothschild [...].

Confessando preferir os clichês, as frases feitas, as imagens conhecidas aos volteios da boa retórica, Custódio de Paiva Lima emprega frases curtas e inusuais, feitas de um gerúndio, de uma conjunção, de um substantivo; um vocabulário escorreito em que se inserem termos já pouco usados e, em abundância, expressões do mais perfeito lugar comum, formando um todo pleno de sagacidade e de troça. Relato de idas e vindas que não abandona o seu fio condutor – a morte do Senador Pinheiro Machado – e que se amplia no desenho de perfis, nas descrições da cidade do Rio de Janeiro, no esboço das mentalidades e no tecer das intrigas políticas.

E a linha que separa a ficção da realidade se embaralha sem que isso resulte em prejuízo para o prazeroso ato de ler ou para a compreensão dos azares do Continente.