domingo, 30 de maio de 2004

Soneto da ira santa


         Mais santo é quem verseja em palavrão. 

            Dentre os alfabetizados não há, no país, quem ignore falcatruas, descarados e impunes roubos, as costumeiras mentiras de todo e qualquer (como sempre, salvo, neste caso, raríssimas exceções) dirigente ou legislador. Apenas, a ânsia de tirar proveitos (ou até, muitas vezes, parcos proveitos) ou deles usufruir, faz com que impere a lei do silêncio ou da hipocrisia, quando afirma inocências ou mal entendidos. Ninguém, tampouco, ignora as infinitas mazelas do país, cuja enumeração, de per si, é lamentável e, pela suas proporções, desesperadora, se houver a intenção de eliminá-las. Então, exatamente como uma voz de todos (ou de quase todos), se eleva a de Glauco Mattoso, não apenas para dizer o que, sobejamente, já é sabido, mas, na forma perfeita do soneto.
            De quase mil sonetos numerados, foram escolhidos cem para fazer parte de Poética na Política: cem sonetos panfletários, que a Geração Editorial de São Paulo acaba de publicar neste abril de 2004. Sem dúvida, eles são um diário dos desmandos do poder e adjacências: os candidatos a governo, a dívida externa, o comércio exterior, o simulacro das prisões dos poderosos, os ridículos melindres dos figurões diante de verdades que precisam negar, o palavrório faccioso, buscando ilibar de evidentes culpas o cidadão que se considera acima de qualquer suspeita, os tumultos dos políticos no plenário das instituições às quais devem servir, a total impunidade dos corruptos, as supostas reformas preconizadas, os aproveitadores das causas sociais, a frágil liberdade de expressão, a inépcia dos governantes, o difundido uso do nepotismo e assim por diante, e assim por diante.

            Para versar sobre tais assuntos é preciso prudentemente contorná-los ou não policiar as palavras que o bom tom e o bom gosto condenariam.

            Glauco Mattoso não prescinde do calão porque, diante do que ocorre, no país – e parece que sem remissão – é impossível não se indignar e, então, medir palavras. Todavia, se os palavrões se repetem (porque, na verdade, os desacertos se repetem sem tréguas) e podem se mostrar impróprios numa tradicional criação poética, os versos do soneto, obedientes a sua métrica, revelam um conhecedor da palavra e das suas musicais e harmoniosas combinações.

            O soneto 240, “Revoltado”, em décimas de impecável ritmo e impecáveis rimas, se constrói em dois tempos. Nos quartetos, um tema que pode ser universal: o repúdio dos homens pelas tiranias (que nos tempos hodiernos se simplificam em direita e esquerda) e a rebeldia com que a Humanidade desrespeita/os mandos e desmandos dos maus guias. Nos tercetos, o drama pessoal do poeta. Transgride o que é tido por inconteste: o julgamento divino, que define como cruel, covarde e prepotente ao criar os humanos  somente para fazê-los sofrer, indicando, no uso do nós, compartilhar desse destino. Que o segundo terceto irá, já em primeira pessoa, revelar na indignação de um sentir-se lesado: Foi Ele quem, à minha revelia, cegou-me [...]

            Glauco Mattoso não renega a divindade – e como qualquer crente lhe grafa o nome com maiúsculas – nesse questionar seus atos, nesse aceitar-se como um penitente cuja expressão é a poesia. Porém, no lamento do fado que lhe coube, não deixa de estar presente, sub-reptícia, a pergunta sobre essa apregoada infalibilidade que é inerente aos numes e que leva à paciente aceitação de todos os males.

            Na ficção, no ensaio e na poesia Glauco Mattoso é tido sempre por um autor polêmico e que, ainda não se nega – como o fizera nos anos ditatoriais – à resistências. Certamente, como cidadão do Continente, razões lhe sobram para isso.       

domingo, 23 de maio de 2004

Os vates na Academia

 

De Manuel Bandeira sobre Pablo Neruda: o detentor de um dos maiores potenciais
poéticos
existentes no mundo, [...] voz
mundial da poesia reivindicatória

            No dia 4 de março de 1945, Pablo Neruda havia sido eleito senador da República a região mais dura do Chile, ele diz em Confieso que he vivido: Em poucos lugares do mundo a vida é tão dura e ao mesmo tempo tão desprovida de mimos para vivê-la. Percorrendo-a, como senador eleito por essa gente sem escola e sem sapatos, sua poesia foi-se alimentando dos padecimentos e das lutas, dos amores e dos cantares que presenciou e sentiu; enriquecida pelo que ele chamou de uma dura lição de estética e de busca através dos labirintos da palavra escrita o fizeram chegar a ser poeta de seu povo. Nesse ano, recebe o Prêmio Nacional de Literatura de seu país, ingressa no Partido Comunista Chileno, é convidado para visitar o Brasil e conhecer Luís Carlos Prestes recém posto em liberdade, após dez anos de cativeiro. No dia 15 de julho, diante das cem mil (ou, oitenta mil ou cento e trinta mil) pessoas que lotavam as arquibancadas e o gramado do Estádio Municipal do Pacaembu onde se realizava o comício dos comunistas, Pablo Neruda, na tribuna oficial, ao lhe ser dada a palavra, em vez de um discurso, lê, em espanhol, o poema escrito horas antes, em louvor a Luís Carlos Prestes. Emocionada, a multidão aplaudia a cada verso e tanto que, ao terminar, conforme relata Fernando Morais (Olga, São Paulo, Alfa-Ômega, 1985), como os aplausos não cessassem, voltou ao microfone para repetir o último verso: Silêncio: que o Brasil falará por sua boca.

            Alguns dias depois, no dia 30 de julho, diz Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta, Santiago, Zig-Zag, 1967), no Rio de Janeiro, Pablo Neruda é recebido na Academia Brasileira de Letras. Na revista da Instituição (Ano 44, v.70, 1945) consta, no entanto, que a visita ocorreu no dia 26 de julho. Acolhido, na companhia de personalidades (cujos nomes não foram citados na ata que registrou essa sessão), com uma salva de palmas e algumas frases de saudação do Presidente da Casa que a seguir deu a palavra ao poeta Manuel Bandeira. Meu caro Senador Pablo Neruda, assim ele se dirige ao Poeta, pedindo permissão para tratá-lo de senador embora seja o detentor de um dos maiores potenciais poéticos existentes em todo o mundo, porque sabe que ele se envaidece mais do mandato, recebido dos mineiros chilenos, que do Prêmio Nacional de Literatura de seu país que acabara de receber. A seguir, menciona, entre os acadêmicos que fundaram a Instituição, aqueles que dedicaram a mocidade aos ideais que de Pablo Neruda são mais diletos: a justiça social, a liberdade, a república, a democracia. E entre os literatos, os que renovaram o ambiente espiritual brasileiro, imobilizado pelo exaurir romântico. Refere o ter sido a Academia considerada uma instituição reacionária e rebate a asserção com o argumento de que, se assim fosse, não estaria ele, nesse momento, expressando o seu fervor pela poesia livre, impura, romântica, expressionista, profética, originado da leitura de Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Cita as palavras de Garcia Lorca (rapaz encantador, raro e potente poeta) quando apresenta Pablo Neruda na Universidade de Madrid, definindo-o como um poeta mais perto da morte do que da filosofia; mais perto da dor que da inteligência; mais perto do sangue do que da tinta. Palavras que Manuel Bandeira endossa, acrescentando que a vida posterior do Poeta iria confirmar tais asserções. E se refere às críticas a Residencia en la tierra (qualifica-o de grande livro) que foi tido como o solilóquio incoerente de um homem que se divorciou da vida que o rodeia e aquelas enunciadas por Amado Alonzo no longo estudo que dedicou à poesia de Pablo Neruda onde consta a insistência com que aparecem nos poemas as palavras ceniza e polvo. E, embora aceitando as pechas que lhe atribuem – céptico, pessimista – Manuel Bandeira pede perdão por repeti-las e afirma que, diante da Espanha em ruínas, a poesia de Pablo Neruda mudou, jurando defender até à morte o que assassinaram na Espanha: o direito à felicidade, tornando-se a voz mundial da Poesia reivindicatória. Encerrando a saudação, Manuel Bandeira menciona Parral, o lugar de nascimento do Poeta, seus dois livros mais conhecidos e que todo o Brasil ouviu comovido a saudação do Pacaembu. Na primeira pessoa plural a englobar os acadêmicos, em nome dos quais se expressa, reconhece no Poeta o sangue, as dores, o justo anelo de felicidade dos mineiros de Tarapacá e Antofogasta e diz da honra de tê-lo como visitante e saúda, na pessoa do Poeta, a sua pátria.
 
            Grandiloqüente e plena de floreios foi a resposta de Pablo Neruda: adjetivos, metáforas, símiles, para recordar os nomes essenciais de Machado de Assis e Euclides da Cunha e dos  rumorosos poetas maiores: Castro Alves, Gonçalves Dias e Alvarez de Azevedo. Irá defini-los como aqueles que atacaram o monumento da tradição e a expressão de sua época e que se tornaram, por sua vez, tradição e monumento, porque não cultivaram um templo vazio mas o coração e o destino do homem e ao inventário da riqueza estética do Brasil, trouxeram  nos seus cantos caudalosos a voz indestrutível de seu povo. Refere-se à atenção que foi dada a sua obra, cujo valor, ele diz, talvez esteja apenas em continuar com o seu tom pessoal, a antiga profissão dos trovadores de amor e de guerra, de fé e esperança. E se atém aos temas de seu canto – as tristezas e as lutas da época em que vive, o louvor aos heróis e a defesa dos ideais. Sem renunciar, no entanto, à herança cultural – o pensamento e a beleza que herdamos – e lhe dar continuidade, entrelaçando o passado com o presente. E, agradecendo a acolhida, diz de seu sonho: uma só América na dignidade da liberdade e na unidade da cultura.

            Nesse por assim dizer diálogo entre os poetas, Manuel Bandeira, que se dirige a Pablo Neruda com o cerimonioso uso do pronome vós, faz menção à episódios recentes de sua vida, que, provavelmente, tenham circulado na imprensa. Porém, ao citar as palavras de Frederico Garcia Lorca numa cerimônia ocorrida há tantos anos passados e as de Amado Alonzo (Poesia y estilo de Pablo Neruda, 1940), demonstra um interesse maior pelo Poeta que será inegável ao expressar a sua admiração por Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924) e Residência en la tierra (1935). Faz referência ao poema “Entrada a la madera” e cita alguns versos de “Oda con un lamento”, de “Arte poética” e de “Madrid” de España en el corazón.

Dirigindo-se aos acadêmicos também a usar o respeitoso vós, é breve a homenagem de Pablo Neruda nessa rápida menção aos cinco autores brasileiros. Sobretudo, ele expressa e reiterando, a humildade – quero deixar uma palavra invalidada por meu menor merecimento, minha pequena história de escritor, a simplicidade de minha poesia – o imenso respeito com que abre os livros do passado.

Donos das palavras e de suas riquezas, os poetas, no recinto das normas e dos preceitos, se deixaram conduzir. E, ao falar com serena sobriedade ou exuberante entusiasmo, a voz de um e de outro resultou contida.

domingo, 16 de maio de 2004

Leocádia

            O poema “Dura elegia”, que lhe escreveu Pablo Neruda foi reproduzido em cartões postais Vida de Luís Carlos Prestes: O Cavaleiro da Esperança, São Paulo, Martins, 1947), à mulher, competia casar bem e se limitar ao lar, aos pensamentos do marido, sem se interessar pelo que se passava além das fronteiras de sua casa e em que ler um romance era um ato quase imoral. Mas, Leocádia, queria ler jornal e saber de política; queria ir para a Escola Normal, ser professora e ensinar crianças pobres a ler, enfrentando, nesse afã de participar, de ajudar, os preconceitos do mundo que a rodeava. Igualmente rebelde, o homem com que se casou, Antonio Pereira Prestes, que fugiu de casa aos treze anos para se alistar no exército quando sua mãe, acreditando na superioridade da nobreza, lhe desejava um futuro na corte. Tiveram um lírico noivado nas ruas de Porto Alegre e juntaram num casamento suas rebeldias adolescentes, diz Jorge Amado. Depois, uma vida difícil porque Antonio Pereira Prestes, abatido por uma longa enfermidade, morreu cedo, no Rio de Janeiro para onde se transladara com a família em busca de recursos médicos. Deixou um parco montepio de capitão e cinco filhos, dos quais o mais velho não tinha, ainda, dez anos. Leocádia foi obrigada a trabalhar para lhes prover o sustento, dando aulas de francês e de música para os poucos alunos do bairro pobre onde vivia; ou costurando, quando os alunos rareavam, vestidos de fazenda simples e feitios baratos. Nos seu tempo livre, cultivava o jardim e cuidava dos pássaros, sem permitir jamais que a vida difícil e trabalhosa a desviasse do sonho de fazer de seus filhos pessoas dignas para quem a honra estivesse acima de tudo.
que percorreram o Continente. Contrariando a afirmação dos embaixadores do Brasil que, submissos às ordens superiores, designavam seu filho como um delinqüente comum, Leocádia Prestes viajou pela França, Suíça, Alemanha, Inglaterra, em busca de ajuda para livrá-lo da prisão arbitrária e das torturas a que foi condenado pela ditadura de Getúlio Vargas. E, para, igualmente, salvar Olga Benario, sua mulher e sua neta, ainda bebê, dos cárceres nazistas. Determinação e coragem surpreendentes numa época em que, diz Jorge Amado (

            Quando a marcha revolucionária, sob as ordens de seu filho, se desfez, refugiaram-se, os que dela faziam parte, na Bolívia e, depois, na Argentina. E foi em Buenos Aires que, em contato com os líderes dos partidos políticos, ligados ao proletariado, Luís Carlos Prestes se inicia nos estudos marxistas o que o leva a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro e a partir para URSS. Em novembro de 1931, chega a Moscou com a mãe e as quatro irmãs. Um de seus intuitos, aprender o que representavam essas teorias estudadas para a solução dos problemas de seu país que ele almejava fossem resolvidos. E, para isso, retorna ao Brasil, em 1935, incógnito, para preparar a revolução comunista. No Rio de Janeiro, protegido por um forte esquema de segurança e auxiliado por elementos preparados para tal, trabalha sem descanso para por em prática o levante que ordena seja no dia vinte e sete de novembro, às três horas da madrugada. Realmente, diz Fernando Morais em Olga (São Paulo, Alfa-Ômega, 1989) começou às três da madrugada e acabou à uma e meia da tarde, deixando os seus seguidores  na ilegalidade e sujeitos `a uma terrível repressão policial que a traição do Secretário Geral do Partido, tornou sobremaneira eficiente. Luís Carlos Prestes e sua mulher grávida foram presos. 

            Tomando conhecimento, em Moscou, que o filho e sua mulher estavam nas mãos de Filinto Müller, Leocádia decidiu lutar para que fossem liberados. Com a filha Ligia, viajou para a Espanha onde, em comícios, organizados em todo o país, ela pedia, não somente pelo filho e sua mulher, mas por todos os presos políticos do Brasil. Depois, foi a peregrinação a Paris, Londres, Genebra e Munique. Ao saber que a mulher de seu filho havia sido entregue pelo governo brasileiro aos nazistas, viajou a Alemanha para vê-la o que não foi permitido. Tentou recorrer à mãe de Olga Benario, a única pessoa, segundo os nazistas, em condições de ajudá-la a provar a filiação de neta, o que significava lhe evitar a morte. Mas, como relata Fernando Morais, ela não permitiu a Leocádia terminar de dizer o que estava ocorrendo para exigir que se retirasse, respondendo que nada tinha a ver com a comunista presa em Berlim. Restavam, então, os difíceis caminhos pelos meandros burocráticos instaurados pelos nazistas, de aquém e de além mar, a fim de obter os documentos que eram exigidos para ter a guarda da criança. Uma luta ferrenha que iria durar muito tempo e que não fosse pelo resgate da neta das prisões nazistas onde havia nascido, poderia ser considerado inglória, pois não iria conhecer sua nora Olga Benario, morta num campo de concentração e não mais iria rever o filho. Enquanto persistia na trabalhosa e sofrida busca para tirá-lo e a sua mulher e a sua neta das garras nazistas – viajando, pedindo, contratando advogado – Leocádia Prestes também se preocupava em fazer chegar à prisão, pacotes de alimento para a ajudar a amamentação da menina; em preparar um pequeno enxoval; em escrever cartas, que muitas vezes não eram entregues.


            No dia 21 de janeiro de 1938, no presídio de Barnimstrasse, em Berlim, segundo conta Fernando Morais, recebeu a neta Anita Leocádia das mãos da enfermeira-chefe da prisão e ainda com medo de imprevistos que lhes impedissem a saída da Alemanha, partiu, imediatamente para a estação de trem. Contudo, na França ou na Espanha, países em que havia feito a campanha pela liberação de Olga e de Anita Leocádia, sua neta, era visada pela Direita. Diante de uma Europa ameaçada pelo poder nazista em ascensão e a impossibilidade de voltar ao Brasil decide partir com a filha Ligia e com a neta para o México.

            E é no México, quando Olga Benario já havia sido executada no campo de concentração, e mal sabendo do filho, que irá morrer Leocádia Prestes, em julho de 1943. O Ministro da Guerra do México, ex-presidente do país, General Lázaro Cárdenas, pede ao Governo brasileiro, liberdade para que Luís Carlos Prestes assista ao funeral da mãe. Pablo Neruda, que era, então, cônsul no México, intercede oficialmente, junto à Embaixada brasileira. O pedido é negado e o Poeta, indignado como tantos, comparece ao enterro, levando flores e o poema,"Dura elegia" que será publicado na imprensa, no dia seguinte e incluído no livro Tercera Residencia (Buenos Aires, Losada, 1947).
Nele, é louvada por ser a mãe de Luís Carlos Prestes, e também pela coragem, perseverança e firmeza que a conduziram na luta pela vida, pela liberdade de seu filho.

E dirá Jorge Amado: velha mulher de cabelos encanecidos, de rosto marcado pela dor, magnífica figura de mulher, gloriosa na sua velhice, impressionante Leocádia.

domingo, 9 de maio de 2004

Esse fio tão tênue


            É o primeiro livro do poeta e como relata em Confieso que he vivido, publicado, em 1923, as suas expensas, numa  aventura cujo preço foi a venda de uns poucos móveis e o empenho do relógio que, solenemente, lhe tinha sido dado pelo pai. No entanto, lhe propiciou muita alegria e um momento, dirá mais tarde, que nunca mais voltará: Virão muitas edições mais cuidadas e mais belas. Chegarão suas palavras transferidas na excelência de outros idiomas como um vinho que canta e perfuma em outros lugares da terra. Mas, esse minuto em que sai fresco de tinta e terno de papel, o primeiro livro, esse minuto arrebatador e embriagante, com sons de asas que revoluteiam e de primeira flor que se abre na altura conquistada, esse minuto está presente uma só vez na vida do poeta.


            Foi escrito em Santiago, precisamente na pensão da rua Maruri, 513 e os quarenta e oito poemas que dele fazem parte se abrigam sob cinco títulos – o poeta os chama de capítulos – sendo “Los crepúsculos de Maruri”, o terceiro e no qual se inscreve “Saudade”. Palavra (título, também a iniciar o poema e a finalizá-lo) que, é sabido, não pertence à língua do poeta. Assim, nas quatro estrofes, constituídas de quartetos de rimas intercaladas, Pablo Neruda procura o seu sentido. No primeiro quarteto, perguntando sobre um significado que nem os dicionários empoeirados e antigos, nem outros livros lhe oferecem, lhe atribui qualidades: a de ser doce e de perfis ambíguos, de ser uma palavra branca.  No segundo, ampara-se então, na palavra alheia (dizem), na emoção de um amigo, ao pronunciá-la e no terceiro quarteto diz adivinhá-la  em Eça de Queiróz, sem perceber-lhe  o segredo E, assim, ainda, insatisfeito, interpela alguém  (oiga vecino) na última estrofe na busca de um significado. Porém, continua sem resposta, preso, apenas, à  sua sonoridade: um tremor delicado. E a repete, seguida de reticências, fazendo dela, o último verso do quarteto.

            Se a primeira estrofe do poema, apesar da rima, da sinestesia e da antropomorfização da palavra, presentes no último verso, está próxima de um texto em prosa, nas demais, o poeta irá entrelaçar imagens e sugestões com elementos que serão uma constante nos seus versos: palavras remetendo ao amor, à natureza, às cores, a um interlocutor, ao próprio sentir. Aproxima da palavra saudade, também sem mencioná-la, substituída por pronomes, o destino dos amores distantes que nela se entristecem, elementos do mundo animal, tonalidades (os azuis das montanhas, dizem que são como ela), um amigo (valorizado pelos adjetivos nobre e bom e por ser amigo das estrelas) a nomeia num tremor que também será o seu ao pronunciá-la ( Y me tiembla la boca su temblor delicado). Nessa atribuição de cor e de mistério, de doçura e de ser inatingível (comparando-a com a borboleta e o peixe que não se deixam apanhar), da sensação física a permanecer na boca,  a impotência de uma definição. E o  último verso é feito apenas da palavra que não se entrega: Saudade...

             Crespulario é palavra inventada por ele, para título desse livro que reúne os poemas escritos entre 1920 e 1923. Primícias do poeta, ousando expressar a grande aventura do viver e do sentir – um crepúsculo, perfumes, sons de sinos, uma reflexão sobre a morte ou sobre o amor ou sobre a passagem do tempo, lembranças de leituras – já prenunciando essa trajetória que não elude os motivos poéticos que, também, as pequenas coisas  oferecem; já definindo essa relação profunda com as palavras da qual dará constância no seu livro de memórias. E estabelecendo esse fio tão tênue – saudade, Eça de Queirós – com Portugal que, somente muitos anos depois, com os poemas do canto XV, “La lámpara marina”, de seu livro Las uvas y el viento, irá retomar.

 

domingo, 2 de maio de 2004

Perigo sem cautela

            A Summus Editorial ao lançar Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros, de Osman Lins, justifica a decisão de reunir em livro uma seleção de seus textos dispersos em jornais: numa época de cautelas e de medos, onde tudo é dito de maneira dúbia, respira o leitor, com alegria, nesse livro franco e viril, o ar sempre reconfortante de franqueza e da coragem de dizer.  Coragem, sem dúvida, teve Osman Lins ao examinar livros didáticos, problemas do escritor no Brasil e aspectos do ensino universitário, sem escamotear-lhes nem os defeitos, nem os vícios, nem as imperfeições que o levaram, ao agrupá-los, a cunhar a significativa expressão problemas inculturais brasileiros.
 
            “Reflexões sobre um quadro negro” foi publicado em 1976. Discute as razões da grande aceitação, nos campos de Letras, das doutrinas que entendem o texto literário como um sistema imanente, liberto das relações com o sentir dos homens e com os fatos sociais e políticos da sociedade onde são gerados. Na época, tal modo de aproximação do texto literário se congregava nas várias modalidades do estruturalismo, corrente que, havendo se expandido nos principais centros universitários da Europa, encontrou solo fértil no Brasil, sempre tão receptivo a tudo que chega do hemisfério norte. Osman Lins sintetiza o seu postulado básico: no estudo da literatura o que deve interessar é o texto em si, suas conexões, sua organização. As idéias, por mais profundas, mais justas ou mais afortunadas que sejam, não fazem literatura. As interpretações da obra e as tentativas de estabelecer conexões com algo que lhes seja exterior pecam pelo arbítrio e estão ultrapassadas. Diante de uma doutrina tão clara e linear, ele se propõe, no entanto, refletir sobre o quê, exatamente, a torna tão sedutora e aceitável nos cursos de Letras brasileiros. Começa por retomar a questão do nível intelectual dos que ingressam na faculdade, que, a cada ano, deixa mais a desejar. O que se torna inquestionável, quando submete, aos seus alunos do quarto e sexto semestre de Literatura Brasileira, um questionário com dez quesitos, envolvendo conhecimentos superficiais de Literatura. O resultado demonstrou, não apenas a insuficiência, a imaturidade e o despreparo deles, mas, também, o dos professores que dessas insuficiências não se dão conta, ministrando cursos, baseados no que aprenderam na Europa ou em revistas estrangeiras, sem reconhecer que tais alunos não são interlocutores (ou, mais propriamente, ouvintes) aptos a absorver  tais conteúdos.

            Os anos passaram, proliferaram, no país, os cursos de Letras e conseqüentes Mestrados, Doutorados, Pós-Doutorados, cujas deficiências – salvo as sempre raras e honrosas exceções – dificilmente são sanadas. E o mundo editorial continuou preso aos velhos hábitos de publicar, preferentemente, os títulos mais vendidos nos Estados Unidos; e, não foram muitas as livrarias que surgiram; e, tampouco, aumentou o número de bibliotecas e, as existentes, pouco acrescentaram ao seu acervo; e a edição de jornais e de revistas continua a ser em número ínfimo, se considerado o número de habitantes do país.E, como sempre, continua a comentar-se e a lamentar-se sobre a mediocridade intelectual dos estudantes de Letras.

            Na verdade, se as correntes críticas mudam em consonância com os modelos importados, é inegável, no entanto, continuar vigente o tradicional apego a esses modelos. E, tudo leva a crer que os métodos de ensino, ainda não induzem às necessárias e imprescindíveis leituras. O que, nos tempos atuais, ainda se agrava com a possibilidade de obter informações pelos meios eletrônicos que não custam muito e satisfazem àqueles que não se recusam a uma produção intelectual exatamente igual à dos demais.

            Assim, diante do perigo próximo e evidente de continuar a ser o ensino da Literatura essa gigantesca máquina de enganar, de que fala Osman Lins (e os outros cursos universitários dessa “máquina” estariam isentos?), o que somente parece existir é a falta de cautela diante de um futuro, presumivelmente, incerto.