No texto
biobibliográfico que, na edição da Universidade Federal de Santa Maria antecede
as páginas de Terra gaúcha, José
Newton Cardoso Marchiori menciona o livro de estréia de Roque Callage, Prosas de ontem, publicado em 1908.
Também, que mal acolhido pela crítica, foi renegado pelo autor que, não apenas
o ignorou na sua bibliografia como deixou claro, na dedicatória que fez a si
mesmo num dos exemplares, o que dele pensava: para Roque Callage, como lembrança
das muitas asneiras que escreveu, of. Roque Callage. Santa Maria, 1908.
Exagera, sem
dúvida, embora na verdade, essa obra como a que se lhe seguiu, Escombros (1910), não possui as qualidades
que estarão presentes em Terra gaúcha,
publicado em 1914 e cujo sub-título, “Cenas da vida do Rio Grande”, anuncia o
seu desígnio: fixar a terra e o homem rio-grandenses. São quinze textos breves
que se detém nas modificações que a chegada dos colonos e do trem trazem para a
vida nos campos; num episódio de audácia temerária na Revolução Farroupilha; na
morte de uma rês; na sina do gaiteiro cego; no drama da seca; no perfil de um
carneador de matadouro; num fandango; na cruz, assinalando um túmulo anônimo;
na briga por ocasião de uma carreira; na marcação de gado; no regresso para o
pago; na velha escrava.
O terceiro
deles tem por título “Contrabandista” e se constrói em quatro tempos, separados
por um espaço e por três asteriscos. Inicia-se com o narrador constatando que já
não mais existe nos campos, o caudilho
das escaramuças d’antanho e, repetindo o que dizem, que tampouco existe aquela figura de aventureiro e revel,
ressumbrando o fogo da coragem, enforquilhado no dorso do cavalo, domando
sinuosidades da terra, vencendo as próprias incertezas do Destino, proclamando
sonhos ardentes de liberdade. Existe, sim, afirma, o contrabandista que na
fronteira, erroneamente, é chamado de caudilho.
No entanto, completa, nada está mais distante do caudilho do que esse tipo que
ele mostra, constituído quase que só de defeitos: dissimulado, tímido,
assassino, filho do latrocínio e do abigeato, predisposto ao crime por oficio
ou uma imprescindível condição do meio. E cuja vida passa perseguido pelo medo,
fugindo, cortando perigosos caminhos, a levar a sua carga. Para defendê-la não
hesita em matar, iniciando, assim, um caminho onde irá encontrar a morte ou,
outra vez, razão para matar.
No segundo
tempo, é apresentado Amâncio Silva, cuja história, era conhecida das pessoas.
Delas, o narrador repete as palavras: ainda guri acompanhava o pai nos
audaciosos percursos e numa emboscada o vira morrer à bala. Jurou vingança e a
ocasião o tornou delinqüente e se fez bandido, ora por necessidade, ora por profissão, mas sempre fiel ao cumprimento
dos contratos, que ficavam assentes com um aperto de mão: símbolo vivo, inalterável, da velha lealdade
gaúcha. Qualidade que, em Amâncio Silva, se alia à de ser extremamente
honesto. Jamais roubou o que quer que fosse dos carregamentos por ele
transportados. Daí, a confiança que inspirava nos negociantes fraudulentos,
nos ávidos passadores de mercancias
ocultas.
O que lhe
aconteceu, constitui o terceiro momento do relato. Um dia lhe apareceu um
negócio diferente e que lhe daria grande lucro: levar jóias para um rancho de
beira de estrada, perto de Alegrete. Depois de cavalgar três dias sob o sol de
verão, depois de resistir à perseguições e tiroteios, chegou enfim, ao destino.
Explicou, ao chegar no rancho, o motivo da vinda e alegre por ter cumprido a
missão e por se ver a salvo dos perigos, entrou com a preciosa carga para o abrigo do rancho patriarcal.
Duas frases
breves, dizem da emboscada da qual foi vítima: Houve um estampido forte de tiros,
ruído de armas brancas se cruzando com fragor. Logo, igualmente breves, as
palavras que referem o resultado da luta: gemidos
de vencido, ânsias de agonizante aniquilado pela traição. Na mesma frase,
expressões a definirem o contrabandista: altaneira
figura de contrabandista homicida e guapo,
e o eufemismo, não mais saiu do rancho
ermo, dando conta de sua morte. Morte cuja tristeza o narrador expressa,
não nos detalhes, nem na exatidão das feridas ou no sentimento de quem se vê
perdido, mas nos adjetivos que definem o espaço onde ela ocorreu: rancho ermo, estrada solitária, numa tristeza pungente de tapera....
Nessas quatro
linhas, o último momento do relato. Em esplêndida síntese, se cumpre o destino
do contrabandista e a seu perfil se acrescentam qualidades que esmaecem o que
de negativo lhe foi imputado. Obedecendo ao afã de fixar realidades, Roque
Callage oscila entre a crítica e o louvor, entre verdades e mitos.

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