domingo, 4 de abril de 2004

O contrabandista 3



 
 
No texto biobibliográfico que, na edição da Universidade Federal de Santa Maria antecede as páginas de Terra gaúcha, José Newton Cardoso Marchiori menciona o livro de estréia de Roque Callage, Prosas de ontem, publicado em 1908. Também, que mal acolhido pela crítica, foi renegado pelo autor que, não apenas o ignorou na sua bibliografia como deixou claro, na dedicatória que fez a si mesmo num dos exemplares, o que dele pensava: para Roque Callage, como lembrança das muitas asneiras que escreveu, of. Roque Callage. Santa Maria, 1908.
 

Exagera, sem dúvida, embora na verdade, essa obra como a que se lhe seguiu, Escombros (1910), não possui as qualidades que estarão presentes em Terra gaúcha, publicado em 1914 e cujo sub-título, “Cenas da vida do Rio Grande”, anuncia o seu desígnio: fixar a terra e o homem rio-grandenses. São quinze textos breves que se detém nas modificações que a chegada dos colonos e do trem trazem para a vida nos campos; num episódio de audácia temerária na Revolução Farroupilha; na morte de uma rês; na sina do gaiteiro cego; no drama da seca; no perfil de um carneador de matadouro; num fandango; na cruz, assinalando um túmulo anônimo; na briga por ocasião de uma carreira; na marcação de gado; no regresso para o pago; na velha escrava.

O terceiro deles tem por título “Contrabandista” e se constrói em quatro tempos, separados por um espaço e por três asteriscos. Inicia-se com o narrador constatando que já não mais existe nos campos, o caudilho das escaramuças d’antanho e, repetindo o que dizem, que tampouco existe aquela figura de aventureiro e revel, ressumbrando o fogo da coragem, enforquilhado no dorso do cavalo, domando sinuosidades da terra, vencendo as próprias incertezas do Destino, proclamando sonhos ardentes de liberdade. Existe, sim, afirma, o contrabandista que na fronteira, erroneamente, é chamado de caudilho. No entanto, completa, nada está mais distante do caudilho do que esse tipo que ele mostra, constituído quase que só de defeitos: dissimulado, tímido, assassino, filho do latrocínio e do abigeato, predisposto ao crime por oficio ou uma imprescindível condição do meio. E cuja vida passa perseguido pelo medo, fugindo, cortando perigosos caminhos, a levar a sua carga. Para defendê-la não hesita em matar, iniciando, assim, um caminho onde irá encontrar a morte ou, outra vez, razão para matar.

No segundo tempo, é apresentado Amâncio Silva, cuja história, era conhecida das pessoas. Delas, o narrador repete as palavras: ainda guri acompanhava o pai nos audaciosos percursos e numa emboscada o vira morrer à bala. Jurou vingança e a ocasião o tornou delinqüente e se fez bandido, ora por necessidade, ora por profissão, mas sempre fiel ao cumprimento dos contratos, que ficavam assentes com um aperto de mão: símbolo vivo, inalterável, da velha lealdade gaúcha. Qualidade que, em Amâncio Silva, se alia à de ser extremamente honesto. Jamais roubou o que quer que fosse dos carregamentos por ele transportados. Daí, a confiança que inspirava nos negociantes fraudulentos, nos ávidos passadores de mercancias ocultas.

O que lhe aconteceu, constitui o terceiro momento do relato. Um dia lhe apareceu um negócio diferente e que lhe daria grande lucro: levar jóias para um rancho de beira de estrada, perto de Alegrete. Depois de cavalgar três dias sob o sol de verão, depois de resistir à perseguições e tiroteios, chegou enfim, ao destino. Explicou, ao chegar no rancho, o motivo da vinda e alegre por ter cumprido a missão e por se ver a salvo dos perigos, entrou com a preciosa carga para o abrigo do rancho patriarcal.

Duas frases breves, dizem da emboscada da qual foi vítima: Houve um estampido forte de tiros, ruído de armas brancas se cruzando com fragor. Logo, igualmente breves, as palavras que referem o resultado da luta: gemidos de vencido, ânsias de agonizante aniquilado pela traição. Na mesma frase, expressões a definirem o contrabandista: altaneira figura de contrabandista homicida e guapo, e o eufemismo, não mais saiu do rancho ermo, dando conta de sua morte. Morte cuja tristeza o narrador expressa, não nos detalhes, nem na exatidão das feridas ou no sentimento de quem se vê perdido, mas nos adjetivos que definem o espaço onde ela ocorreu: rancho ermo, estrada solitária, numa tristeza pungente de tapera....

Nessas quatro linhas, o último momento do relato. Em esplêndida síntese, se cumpre o destino do contrabandista e a seu perfil se acrescentam qualidades que esmaecem o que de negativo lhe foi imputado. Obedecendo ao afã de fixar realidades, Roque Callage oscila entre a crítica e o louvor, entre verdades e mitos.

 

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