domingo, 18 de abril de 2004

Queixa submissa...

            Eram trezentos e três embarcados para cruzar o Atlântico que chegaram na Colônia de São Leopoldo, em 1826, apesar das instruções do governo do Grão-Ducado de Hessen-Darmstadt, divulgadas ao povo de Rheinhessen sobre as condições com que eram tratados os colonos que iam para o Brasil, agenciados por Georg Anton Aloysius von Schaeffer. Nomeado por Dom Pedro I “Agent d’Affaires Politiques”, na Europa, fora o responsável pela primeira corrente emigratória alemã para o Brasil e o documento de alerta – aos que, levados pela pobreza, ansiavam por condições dignas de vida que presumiam vir a ter no outro continente – apontava para os perigos da viagem por mar, o indigno tratamento e a desumana alimentação durante a travessia. Mas, por outro lado, as cartas chegadas do Brasil, falavam da boa situação que aqueles que escreviam tinham conseguido, animando, mesmo os possuidores de uma boa situação na Alemanha, a partir.
 

            José Antonio Brenner, nascido em Santa Maria, estudou passo a passo, através de valiosa documentação, aspectos ainda não conhecidos ou baseados em equívocos ou contradições, o itinerário de uma das famílias que deixou a Alemanha no segundo ano do início da corrente migratória para o Brasil. De seu minucioso trabalho resultou Imigração alemã: a saga dos Niederauer, publicado pela Universidade de Santa Maria, em 1995. Uma obra de raro valor, pelos dados oferecidos que, sem dúvida, serão de grande valia para continuar as pesquisas sobre o assunto, cuja importância para a História do Rio Grande do Sul e de sua formação étnica e cultural é inquestionável.

Nos primeiros de seus vinte e quatro capítulos, José Antonio Brenner se detém na região de onde se originam os colonos, nos portos de origem, nas embarcações em que viajavam; na chegada ao Brasil e na espera, em precárias condições, alojados nos armazéns construídos, na baía de Guanabara, para industrializar o óleo das baleias e que se encontravam abandonados, até que fossem levados a seu destino, no Rio Grande do Sul.

            No caso da família Niederauer, a viagem se deu a bordo do “Carolina” que partiu do Rio de Janeiro, provavelmente em 15 de dezembro de 1825, levando duzentas e oitenta e cinco pessoas. No cabeçalho da relação de passageiros embarcados, constava serem colonos alemães que, por ordem de sua Majestade o Imperador seguiam viagem a bordo do bergantim “Carolina”, do Rio de Janeiro para Porto Alegre, onde seriam entregues ao Presidente da Província. Na verdade, o que sua Majestade o Imperador do Brasil lhes propiciou foi uma passagem pelo inferno.

            Na viagem, que durou mais ou menos um mês, os colonos foram submetidos a um trato desumano pelo assim chamado capitão do barco que não era mais do que um mestre de embarcação a soldo do proprietário. Seu nome não consta dos documentos examinados, sim a sua imperícia (ou outra razão) que fazia com que encalhasse o barco em bancos de areia, prolongando uma viagem feita sob o signo da fome. Porque, talvez, diz José Antonio Brenner, para vender os gêneros alimentícios destinados aos colonos, em Porto Alegre, visando um bom lucro devido à provável escassez de produtos, originada das ações militares na Campanha Cisplatina, ele os sonegava. Disso resultou, entre os passageiros do barco, um tal estado de inanição e de doenças que provocou a morte de, no mínimo, três mulheres e quinze crianças.

            Como testemunho do drama terrível vivido na viagem, a carta dirigida ao Governo Imperial: redigida por um anônimo colono, com letra insegura, descreve um quadro dantesco de submissão, fome, desespero, choro e morte [...]. Tem a data de 4 de janeiro de 1826, quarenta nomes a subscrevem e é antecedida de uma  humilde expressão: Queixa submissa e mui obediente dos colonos em viagem do Rio de Janeiro a Porto Alegre. Começa por explicar que a extrema necessidade em que se encontram, os obriga a pedir socorro. Relata que nos quatorze dias em que permaneceram no Rio de Janeiro, foram alimentados satisfatoriamente, mas que, desde que embarcados no “Carolina”, os víveres foram bastante reduzidos. Do feijão e arroz e biscoitos que inicialmente recebiam, passaram a receber somente farinha. E a promessa de que, chegados ao porto do Rio Grande, receberiam pão, não foi cumprida sob a alegação de que não havia na cidade o que foi desmentido, porque os marinheiros levaram para bordo um saco de pães e cachaça que vendiam pelo dobro do preço. E, com a expressão de medo de que nem os parcos víveres possam durar até o término da viagem, a desesperada informação: De manhã cedo nossas crianças que ainda estão vivas choram de fome pois, até agora, nenhuma vez foram saciadas. Muitas crianças e pessoas idosas, não acostumadas a tais privações, já estão doentes e serão, em breve, jogadas na água. E na convicção de que tal tratamento não representa a vontade do Imperador, esperam confiantes que a situação miserável seja modificada e assinam o documento, em nome de todos, firmando-se do Superior Governo Imperial, os mui humildes e submissos colonos.

            Tem razão José Antonio Brenner ao afirmar que a queixa submissa ainda hoje nos causa forte emoção. Sobretudo, se for considerado que aqueles que a escreveram estavam sob a responsabilidade de um Imperador em quem, ingenuamente, confiavam. E que, muito provavelmente, nunca chegou a receber em suas mãos a desesperada denúncia e pungente pedido de socorro.

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