O relato se
inicia com os quatro contrabandistas sentados ao redor de uma pequena fogueira,
no meio do mato, esperando que a lua se esconda para continuar a marcha. Logo,
a referência ao frio que pede um trago para ser suportado.Três deles não
recusam; Dom Faustino, sim, suscitando a irritação de Mario que se domina para
não provocá-lo com um dito grosseiro. Porque Dom Faustino, tanto pela idade
como pelas suas qualidades, merece respeito. Esteban e Rios lhe reconhecem o
mando e Mario, o novato entre eles e nos seus vinte e um anos, embora saiba que
o silêncio é imprescindível ao ofício, como a paciência, não consegue a ele se
acostumar. O silêncio, ou da noite ou dos homens o incomoda e, por vezes, sente
a vontade de quebrá-lo de qualquer maneira: com risadas, com gritos ou com
balas. Tornou-se contrabandista para usufruir do prestígio másculo que, no campo, possui o ofício, porém a coragem
necessária – a de ficar calado, de estar sempre alerta, de evitar pela astúcia
e por enganos os encontros com os milicos – não era a que imaginava ou
desejava.
Na
segunda parte do conto, começa a ação. A lua se esconde e, já fora do mato,
eles se movem seguindo o plano traçado: Esteban e Rios conduzindo os animais
com as cargas; Dom Faustino e Mario, a uma distância razoável, na frente.
Avançam guiados pela intuição e pelo tino que lhes dá a experiência. O conflito
se instala primeiro em Mário contra si mesmo que deve se abster da bebida: -Contrabandista bêbado é como bala sem
chumbo. Só ruído choco. Depois, com a ordem que irrompe, -Alto!, seguida do barulho dos gatilhos,
se inicia o confronto. A ele será dedicada a terceira parte da narrativa, ora a
informar o que vai sucedendo, ora através de frases que, de lado a lado,
incitam ao combate. Dom Faustino e Mario se antepõem aos atacantes para dar
tempo aos companheiros de fugir com a carga. Quando se trava a arma de Dom
Faustino, Mario torna a repetir-lhe que deve também ir embora porque pode
enfrentar sozinho os milicos. E, assim, sozinho, fica diante das carabinas. Uma
das balas lhe faz soltar a arma da mão As que seguem lhe atingem o corpo o que
não o impede de atirar contra o pelotão até que terminem as balas do revólver.
Quando os milicos passam por cima de seu cadáver, ansiosos pela carga, ela já
estava longe e nenhum rastro foi deixado para indicar o rumo dos que a levavam.
“Contrabandistas”
é o título do conto que se constitui de uma ação limitada no espaço e no tempo.
O espaço, presente no sussurro do arroio, na crosta fofa do húmus, nos olhos
das corujas, no mugir das reses, no latir distante dos cães. O tempo,
transcorrendo sob a luz da lua a determinar a inércia; e na ausência dela, a proteção do cavalgar noturno
que o imprevisto do ataque irá interromper. Embora sejam quatro os personagens
mencionados, o relato se ocupa de dois deles: o velho Dom Faustino, um companheiraço, o mais vaqueano de todos,
o que nunca perdeu uma carga e jamais subornou um guarda. Contrabandista sem
vocação que, no contrabando, quer ganhar para a terra onde pretende se
enraizar. Mario, o contrabandista que deseja a fama, mas não os trabalhos duros
e perigosos: a coragem tenaz e obscura do
lavrador na terra que prepara, do tropeiro na ronda de inverno, do lenhador
diante da solidez da árvore. Na hora do perigo, irá lembrar da confidência
que uma vez lhe fizera Dom Faustino: -Pro
ano, se o diabo não meter o rabo, largo esta vida e me transformo em chacareiro. Já tenho uma terrinha em vista. E
se os guris me saem meio guapos...
que o induzirá a protegê-lo, enfrentando os seis soldados a custo da própria
vida: De bruços sobre o capim se
dessangra Mario. Por quatro bocas quentes lhe resvala corpo afora a vida. Por
quatro caminhos vermelhos se entorna sobre a planície, como se quisesse
encharcá-la na sua fraternidade desdobrada. E morrendo, tem diante dos
olhos o que deseja ser uma realidade: a figura de Dom Faustino chacareiro entre
as espigas generosas.
Um, pelo que
representa na sua integridade sem arestas; outro, pela desmedida coragem e
ousadia, eles, ainda que apenas esboçados, são personagens fortes, dignos de
figurar entre os tipos marcantes que povoam as galerias ficcionais. No entanto,
Serafin J.García no “Pórtico” da primeira edição de Burbujas, coletânea
a qual pertence “Contrabandistas”, publicado em Montevidéu no ano de 1941, diz
que os personagens de seus contos nunca foram inventados. Apenas, tal como os
conheceu, evocados.
E com o
mágico saber do escritor que não apenas estrutura, perfeito, o seu relato como
o povoa de surpreendentes belezas formais.

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