O narrador dos
Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto (primeira edição em 1912, pela
Livraria Echenique de Pelotas) é Blau Nunes, um vaqueano de muito viver, de
muito cruzar o Rio Grande em caprichoso
ziguezague. Uma vez por outra, lembra o que vivenciou nas suas andanças de
tantos anos. Sob o título de “Contrabandista”, vai contar de Jango Jorge, um que foi capitão de uma maloca de contrabandistas que fez cancha
nos banhados do Ibirocaí. Mão aberta, brincalhão, passou a vida a
atravessar os campos da fronteira. Não temia os senões dos caminhos e tanto
enfrentava a escuridão da noite como a cerração da madrugada e a chuva e o
vento. Vaqueano, conhecia os campos por onde andava ou pelo cheiro das plantas
ou pelo ouvido ou pelo gosto das águas. Antes, porém, de contar seu último
percalço, Blau Nunes se alonga em considerações sobre a prática do contrabando
que no Rio Grande do Sul sempre existiu, desde
em antes da tomada das Missões
quando era então sem malícia e mais para se divertir e desalentar as guardas do
inimigo. Entravam campo adentro na
Banda Oriental, arrebanhavam gado; e gado, era igualmente, arrebanhado pelos da
Banda Oriental numa contínua desforra. Depois, veio a Guerra das Missões e o
governo começou a dar sesmaria, mas não proteção e a prática dos monopólios
dava lucro apenas a um rei distante. Os estancieiros, em pessoa, iam buscar ou
mandavam buscar, do outro lado da fronteira, o que precisavam: pólvora, balas pras pederneiras, carta de
jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparo de prata pros arreios... ninguém
pagava dízimos dessas cousas. Depois, o tempo passando, as guerras a se
sucederem – Guerra dos Farrapos, de Rosas, do Paraguai – se instituiu, para não
ir com os cargueiros debalde, o leva
e traz: baetas, fumo em corda, cachaça e panos,
água de cheiro, armas, minigâncias, remédios. Um negócio sem papéis, sem
contas feitas – era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar – para o qual não era preciso mais
do que ser campeiro, decidido, bem armado e andar em grupo para, eventualmente,
dar um vareio nos milicos, ajustar contas
com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo.
E Jango Jorge foi maioral nesses estropícios, diz Blau
Nunes que se lembra dele depois de muito tempo sem encontrá-lo, chegando no seu
arranchamento. Era a véspera do casamento da filha, pois Jango Jorge já estava afamilhado, com mulher e filhos e filha casadoira.Na
madrugada, saiu para buscar–lhe o enxoval e o vestido e os sapatos, e o véu e
as flores de laranjeira. A festa ia se instalando com as visitas que chegavam e
tomavam mate e licor de butiá, com os músicos, com a alegria de que havia de se dançar três dias. Ao
entardecer, a mesa posta, vergando ao
peso dos pratos enfeitados, a
expectativa da chegada de Jango Jorge.
Pungente, em
meio à alegria, a tristeza da noiva a chorar e a rir para mostrar contentamento
quando já anoitecia e o pai não voltava. E o dia se extinguindo e o pai sem
chegar e o seu choro vão anunciando a tragédia que está por vir. Inscrita na
ingenuidade de um sonho feminino: o vestido branco, os sapatos brancos, o véu
branco, as flores de laranjeira que o pai se propõe realizar, lançando-se uma
vez mais no aventuroso e arriscado percurso da fronteira. Interceptado pela
polícia, defende a preciosa carga e salva o vestido branco, o véu branco, as
flores de laranjeira. Não, porém, a vida que perde ao ser crivado de balas. O
silêncio que acompanhou o grupo ao chegar e se alastrou entre aqueles que viram
ser descido do cavalo o corpo inerme, a compreensão, antecedendo as palavras,
de que a festa terminara, o início da tristeza e o relato do que acontecera
cabem em breves seqüências a preparar esse epílogo no qual se reafirma a
presença do branco naquilo que fora desejado, já agora maculado pela violência
da morte: Tudo numa plastada de sangue...
tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que
bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como
flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...”.
O
título do conto anuncia essa ousada figura da História do Rio Grande do Sul que
de boleadeiras na mão, de laço nos tentos ou de armas ao ombro, em furiosos encontros de arma branca se abrigava sob a lei da
fronteira que ( diz Guilhermino César em seu ensaio O Contrabando no
sul do Brasil) planava acima do bem e do mal. Nas primeiras linhas do
relato, se individualiza pelo nome e ao ser descrito: magro mas sempre teso,beirando os noventa anos. Depois, os
adjetivos lhe completam o retrato, como o completam a determinação com que
enfrenta obstáculos e suas qualidades de vaqueano. Mais adiante, numa breve
seqüência, a informação que se estabelecera e outra, também, breve: O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte,
para ir buscar o tal enxoval da filha.
Ele não se mostra em ação, sim pelo que dele diz Blau Nunes e pelas palavras
que reportam seus últimos gestos: enfrentar sozinho e perigosamente, o
adversário, avançar para a mula ponteira, apossar-se do pacote que vinha solto
e amarrá-lo no corpo para cumprir – e aí o amor paterno apenas se acrescenta ao
que já era praxe – o que se propusera. Inscreve-se, nessa defesa da carga e na
valentia, na saga que o precede porque esse historiar do Contrabando no Rio
Grande do Sul que se insere no relato (o
melhor documento para a interpretação do contrabando sulino, diz Augusto
Meyer) expressa valores – bravura, lealdade, dignidade na morte, desprezo pela
autoridade – que também lhe completam o perfil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário