No
capítulo oitavo do romance, cujo título é “O Contrabandista”, Oliveira Belo,
depois de no primeiro parágrafo, considerá-lo uma espécie já desaparecida, o relaciona com os flibusteiros, seus congêneres norte-americanos para,
nas linhas seguintes, historiar-lhe o aparecimento: o monopólio de Portugal e
Espanha que, ao explorar as colônias oprimindo-as com regulamentos tiranamente
egoístas e brutalmente esterilizadores com rigores vexatórios, levou ao ódio que o despotismo provoca nas consciências apaixonadas e ao exercício
da violação da lei. Uma vez que essa lei não podia ser repudiada às claras, o
confronto era feito nas sombras da fraude
e por um contingente que vivia ignorando o governo oficial, obedecendo à
autoridade de sua escolha, alimentando-se de um código próprio, em acorde com
os duros e enérgicos ensinamentos que a vida livre, selvática e altiva propiciava a esse verdadeiro corsário da fronteira: o contrabandista.
Que será, então, definido pelo seu modo de vida, exposta e de incerto amanhã
(habitante das matas e dos desertos), pelas suas lides sempre arriscadas e a
medir força e astúcia com os guardas fiscais e seus soldados, com os indígenas
e com as feras. E, pelo seu caráter: duro e pronto no combate intransigente
contra o inimigo, e sociável, obsequioso, inofensivo e leal com os demais. E,
embora sua profissão fosse de fraude, na rebeldia contra o regime asfixiante que impunha o preço leonino ao trabalho de suas vítimas e não
titubeasse em lesar a fazenda metropolitana, era de uma honestidade – e, então,
o romancista se atém às palavras de Nicolau Dreys – que lhe permitia resguardar um tesouro sem infamar-se nele.
Também, do autor de Noticia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro,
ele se ampara. Não apenas para completar o perfil do contrabandista, mas
para conferir-lhe um papel bem maior do que o de simples mediador entre os que
possuíam mercadorias e os que desejavam comprá-las. Ao afrontar vitoriosamente o jugo ferrenho do ilotismo colonial, o
contrabandista limava os grilhões que o arrochavam e, ensaiava no grito de
liberdade do lucro comercial o verbo da liberdade nacional; ele foi o precursor
desconhecido da independência no novo mundo, o conspirador de uma grande causa.
João
Ramiro, de contrabandista, como seu pai o fora, se torna estancieiro de vastos
domínios e numerosos rebanhos. Diante das lutas que se instauraram no Rio
Grande do Sul para fugir do jugo da corte, obedece às suas razões – nosso direito é combater e vencer – e
marcha com os homens que se dispuseram a segui-lo para se unir aos
revolucionários. Como a continuar os percursos que fizera pelos campos
ludibriando as leis que, seguindo os farrapos, deseja acreditar que serão
outras.
Tratada
a partir das idéias que tem sobre ela os que a atacam e os que a defendem, a
partir dos conflitos pessoais que origina e suas ações belicosas, o romancista
faz em Os Farrapos a História da Revolução Farroupilha e reelabora – como o diz Cláudio Gabiatti no
Prefácio da edição da Fundação Universidade do Rio Grande/Movimento (Porto
Alegre, 1985) – dentro da teia ficcional, homens verossímeis, tipos do povo,
com seus vícios e suas virtudes [...]. Do contrabandista, Oliveira Belo
acredita que “não produziram o estrépito de grandes cometimentos para reboar
com a memória de seus nomes pelos tempos avante: seus bramidos de guerra não
tiveram repercussão na esfera sonora da literatura; os estos volúveis, fugaces do pampa apagaram os vestígios dos hóspedes
aventurosos das restingas e dos ervais, como as ondas do mar desvanecem e
olvidam os sulcos, que por elas lavrou a quilha de um navio em viagem. Ao
fazer dele um personagem, certamente quis salvá-lo dessa vida que não deixa
rastros e não hesitou em se servir do testemunho de Nicolau Dreys que a vários
conheceu e com vários tratou. A sua evidente
simpatia por esse homem fora da lei, o leva a considerá-lo um
ser humano excepcionalmente participante, uma criatura vigorosa que somente se
submetia “às ordens de um chefe eletivo,
cuja autoridade limitava-se à duração da expedição para a qual tinha sido
criado, e cujo poder não reconhecia, às vezes, outro título senão o da força
física ou da desteridade, mesmo durante o curso de seu reinado efêmero. Palavras que levam Guilhermino César a
lembrar, no seu ensaio O contrabando no sul do Brasil, que se
assim pensava e dizia um europeu cultivado que vivia no Brasil às vésperas da
independência, muito mais favorável
seria, de certo, o juízo de todas aquelas populações menos afortunadas – tropeiros,
capatazes, peões de estância, posteiros da Campanha, a gente humilde dos
vilórios missioneiros, uns e outros cerceados nos seu crescimento econômico por
leis ditadas pela Europa, de cujo alcance não chegavam a formar idéia precisa.

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