domingo, 21 de março de 2004

O contrabandista 1

            João Ramiro era contrabandista; um dos derradeiros espécimens dessa corporação singular da qual hoje apenas resta a memória, sombra quase expungida nas tradições da fronteira. Com o monarca da coxilha e o vaqueano, compõe a galeria de tipos que, no cenário apenas esboçado e em meio às escaramuças e combates, fazem parte do universo romanesco de Os Farrapos ( de Luiz Alves Leite de Oliveira Belo, Porto Alegre, 1985) cuja ação tem início um ano após a eclosão da Revolução Farroupilha.

            No capítulo oitavo do romance, cujo título é “O Contrabandista”, Oliveira Belo, depois de no primeiro parágrafo, considerá-lo uma espécie já desaparecida, o relaciona com os flibusteiros, seus congêneres norte-americanos para, nas linhas seguintes, historiar-lhe o aparecimento: o monopólio de Portugal e Espanha que, ao explorar as colônias oprimindo-as com regulamentos tiranamente egoístas e brutalmente esterilizadores com rigores vexatórios, levou ao ódio que o despotismo provoca nas consciências apaixonadas e ao exercício da violação da lei. Uma vez que essa lei não podia ser repudiada às claras, o confronto era feito nas sombras da fraude e por um contingente que vivia ignorando o governo oficial, obedecendo à autoridade de sua escolha, alimentando-se de um código próprio, em acorde com os duros e enérgicos ensinamentos que a vida livre, selvática e altiva propiciava a esse verdadeiro corsário da fronteira: o contrabandista. Que será, então, definido pelo seu modo de vida, exposta e de incerto amanhã (habitante das matas e dos desertos), pelas suas lides sempre arriscadas e a medir força e astúcia com os guardas fiscais e seus soldados, com os indígenas e com as feras. E, pelo seu caráter: duro e pronto no combate intransigente contra o inimigo, e sociável, obsequioso, inofensivo e leal com os demais. E, embora sua profissão fosse de fraude, na rebeldia contra o regime asfixiante que impunha o preço leonino ao trabalho de suas vítimas e não titubeasse em lesar a fazenda metropolitana, era de uma honestidade – e, então, o romancista se atém às palavras de Nicolau Dreys – que lhe permitia resguardar um tesouro sem infamar-se nele. Também, do autor de Noticia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro, ele se ampara. Não apenas para completar o perfil do contrabandista, mas para conferir-lhe um papel bem maior do que o de simples mediador entre os que possuíam mercadorias e os que desejavam comprá-las. Ao afrontar vitoriosamente o jugo ferrenho do ilotismo colonial, o contrabandista limava os grilhões que o arrochavam e, ensaiava no grito de liberdade do lucro comercial o verbo da liberdade nacional; ele foi o precursor desconhecido da independência no novo mundo, o conspirador de uma grande causa.

            João Ramiro, de contrabandista, como seu pai o fora, se torna estancieiro de vastos domínios e numerosos rebanhos. Diante das lutas que se instauraram no Rio Grande do Sul para fugir do jugo da corte, obedece às suas razões – nosso direito é combater e vencer – e marcha com os homens que se dispuseram a segui-lo para se unir aos revolucionários. Como a continuar os percursos que fizera pelos campos ludibriando as leis que, seguindo os farrapos, deseja acreditar que serão outras.

            Tratada a partir das idéias que tem sobre ela os que a atacam e os que a defendem, a partir dos conflitos pessoais que origina e suas ações belicosas, o romancista faz em Os Farrapos a História da Revolução Farroupilha e reelabora – como o diz Cláudio Gabiatti no Prefácio da edição da Fundação Universidade do Rio Grande/Movimento (Porto Alegre, 1985) – dentro da teia ficcional, homens verossímeis, tipos do povo, com seus vícios e suas virtudes [...]. Do contrabandista, Oliveira Belo acredita que “não produziram o estrépito de grandes cometimentos para reboar com a memória de seus nomes pelos tempos avante: seus bramidos de guerra não tiveram repercussão na esfera sonora da literatura; os estos volúveis, fugaces do pampa apagaram os vestígios dos hóspedes aventurosos das restingas e dos ervais, como as ondas do mar desvanecem e olvidam os sulcos, que por elas lavrou a quilha de um navio em viagem. Ao fazer dele um personagem, certamente quis salvá-lo dessa vida que não deixa rastros e não hesitou em se servir do testemunho de Nicolau Dreys que a vários conheceu e com vários tratou. A sua evidente simpatia por esse homem fora da lei, o leva a considerá-lo um ser humano excepcionalmente participante, uma criatura vigorosa que somente se submetia “às ordens de um chefe eletivo, cuja autoridade limitava-se à duração da expedição para a qual tinha sido criado, e cujo poder não reconhecia, às vezes, outro título senão o da força física ou da desteridade, mesmo durante o curso de seu reinado efêmero. Palavras que levam Guilhermino César a lembrar, no seu ensaio O contrabando no sul do Brasil, que se assim pensava e dizia um europeu cultivado que vivia no Brasil às vésperas da independência, muito mais favorável seria, de certo, o juízo de todas aquelas populações menos afortunadas – tropeiros, capatazes, peões de estância, posteiros da Campanha, a gente humilde dos vilórios missioneiros, uns e outros cerceados nos seu crescimento econômico por leis ditadas pela Europa, de cujo alcance não chegavam a formar idéia precisa.

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