domingo, 14 de março de 2004

Heroísmo semeado no rochedo


            Wilson Martins o considera o romance da revolução de 1835 e, em 1985, quando do Sesquicentenário da Guerra dos Farrapos, como um dos eventos então realizados, foi, novamente, publicado numa co-edição da Universidade do Rio Grande e da Editora Movimento de Porto Alegre. Escrito por Luiz Alves Leite de Oliveira Belo, Os Farrapos apareceu, pela primeira vez, em 1877 e, segundo Cláudio Gabiatti, professor de Literatura Brasileira na Fundação Universidade do Rio Grande, é o único romance em nosso meio, escrito especificamente sobre e com matéria da Revolução Farroupilha que irá fixar não nos grandes combates, não nas cenas épicas, não nas falas heróicas, mas nos indivíduos e nos seus conflitos.

            No cenário que descreve, brevemente, opondo as planícies do extremo sul às montanhas e às matas que formam a topografia do norte do estado se detém em tipos que o habitam e elabora uma trama amorosa de extrema simplicidade que, no melhor estilo romântico, se enreda numa teia de enganos que irão se desfazer nas últimas páginas do livro.

            Assim como no romance O Gaúcho, de José de Alencar, Os Farrapos se inicia com uma descrição de cenário no qual, igualmente, surge um cavaleiro que propiciará a definição do gaúcho – a quem cabem os epítetos de centauro, rei, herói, soberano, monarca da coxilha – numa generalização que se individualiza no personagem Juca Silva. Com Anita, formará o par amoroso que, em ingênuo e inesperado encontro, se faz juras de amor. Trágicas circunstâncias, favorecidas pela guerra, irão separá-los até que os mal-entendidos se desfaçam.

Embora a maior parte das ações que se sucedem sejam de índole guerreira, suas razões, poucas vezes, obedecem aos ideais revolucionários. Então, um apanhado de perfis, um emaranhado de relações, de amizades fiéis, de interesses econômicos e de envolvimentos afetivos delineiam, nas ações e nas palavras, universos díspares, desencontrados. O capitão Álvaro, espalhando incêndios e ruínas e mortes no desfraldar da própria bandeira, escamoteada sob a bandeira tricolor da Revolução; o estancieiro João Ramiro, lançando-se à corrente revolucionária para contê-la nos seus excessos.  Certezas e dúvidas se expõem em diálogos que irão compor o painel da luta, mostrando-a nas suas contradições.

Quando Juca Silva chega na casa do primo para comunicar que, aderindo à Revolução, vai se unir aos combatentes, primeiro escuta palavras indignadas: -Que é isso, homem, você está sonhando ou acordado? Quer ser farroupilha? Caramba! Não tem as maneias nos pés! Vá, mate, estaqueie, queime, roube, apraz-lhe isso? Está pesteado do juízo, o pobre!. Seus argumentos, porém –  os farrapos são soldados que defendem a liberdade, ameaçada pelos monarquistas e que preferem dar o corpo aos corvos e aos caracarás do que viver sem honra, antes brigar nos campos do que dormir como porcos na lama da tronqueira – irão convencer o primo e fazê-lo, também, um adepto da Revolução. Estão prestes a partir quando são interrompidos pelo pai, indignado, e tendo como razão estarem os farroupilhas combatendo contra a lei e que El-rei faz bem em mandar campeá-los como bois fugidos da mangueira, que ganharam o banhado [...], e andar Bento Gonçalves de conchavo com os castelhanos. Juca Silva não se dá por vencido e insiste, não em seguir a castelhanada, mas os que se proclamam livres e testemunha sobre as palavras do general, sobre a sua altivez, mesmo traído e na condição de prisioneiro.

            No capítulo IX, o rico estancieiro João Ramiro chama Juca Silva e o vaqueano Manuel Serrano, homens de confiança, para exprimir suas incertezas a respeito da rebelião: que pedindo aos chefes uma exposição de princípios e fins da guerra em que andam tão acesos, como reposta obteve palavras sonoras que prestam para concitar o povo, proclamações teatrais que o levaram à  convicção de que muitos generais – senão todos – ignoram o que fazer se forem vitoriosos. E que nem o governo do Rio sabe o que faz ou pode levar a cabo o que quer, nem o governo de Piratini conhece os caminhos pelos quais barafustou na confusão do combate. Continua desabafando as suas dúvidas sobre as origens da luta (desgostos e ódios acumulados pelos governos estúpidos ou despóticos, legítima defesa, desforra pessoal) e conclui que, para ser ouvido pelos generais, a sua espada tem que pesar na balança das batalhas. Assim, se decide a lutar. De seus interlocutores, na verdade, ouvintes de seu longo monólogo, Juca Silva não apenas se mostra de acordo com o que escutara – o que eu quero é a liberdade dos nossos pagos – mas estipula a sua linha de conduta:  que eu não quero, e comigo não contem para isso, é combater os caramurus à traição como o canguçu que se esconde na guaxima para saltar pelas costas da rês que vai descuidada. Linha de conduta que é comum à de outros campeiros gaúchos que, antes de partir para a luta contra os legalistas, já haviam estipulado que se acabe com eles brigando no campo frente a frente e não pelo traiçoeiro [...].

            Mais adiante, num capítulo em que aparecem personagens históricos, após uma reunião em que estiveram presentes os principais chefes rebeldes, convocados por Bento Gonçalves, no intuito de estabelecer, entre eles, a unidade e a harmonia, João Ramiro que nela se insinuara, assume a voz da razão para enumerar as fragilidades do movimento revolucionário: não tem exército porque não há comando efetivo; não tem chefes porque não existe subordinação. Grandiloqüente será a resposta de Bento Gonçalves e feitas de entusiasmo as palavras que ao General dirige Garibaldi.

            Nas vozes dos personagens, pruridos éticos, ódio a exigir represálias, vontades perseguindo a realização de sonhos, a lógica da razão conduzem, então, o relato de Oliveira Belo. No seu âmago, o desejo de escrever a História da Revolução Farroupilha, cuja derrota faz dizer a um personagem: Muito heroísmo semeado no rochedo.

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