domingo, 29 de fevereiro de 2004

O louco do Cati: a força da simplicidade 2


            [...] conversa longa, evocativa e descansada, [...] muralha entrançada, conglomerada, confundida, são expressões, nesse uso de três adjetivos, dedicados a um substantivo, não muito freqüentes no romance de Dyonélio Machado O Louco do Cati, que a Planeta do Brasil editou no final do ano passado e que, haja vista as quatro edições anteriores, é a quinta desde que foi publicado, pela Globo de Porto Alegre, em 1942 e, mais tarde, pela Vertente e pela Ática, ambas de São Paulo.


            Na verdade, uma verdadeira obra prima da ficção brasileira, tão sabiamente construída, que mal deixa perceber os recursos narrativos e formais de que é feita. Considerando-se, por exemplo, a presença do adjetivo – segundo Raúl H. Castagnino, um dos elementos individualizadores no estilo – nas suas páginas, fica evidente que Dyonélio Machado o sabe usar como se tivesse aprendido nos Aforismos a un escritor novel de Azorín (José Martinez Ruiz) a escrever sem ele. Porque, em O Louco do Cati, além desse uso corrente e imprescindível do qual os mais irredutíveis inimigos do adjetivo não conseguem escapar – nem o próprio Azorín o conseguiu –  a sua presença é parcimoniosa tanto quanto ao número como, sobretudo, quanto às combinações entre adjetivo e substantivo .Combinações estas que Ernesto Guerra Da Cal, ao estudar o estilo de Eça de Queiroz, chama de “aliança desusada. É a que não obedece à rígida aliança lógica de dois termos independentes, claros e unívocos, cujos motivos e laços de união são evidentes e previsíveis. Fugindo à junção de substantivo e adjetivo por caminhos já palmilhados e permitidos pelas normas, encontram-se em O Louco do Cati : gesto apocalíptico (o do personagem central que, assustado no clarear da manhã, aponta para a silhueta da construção do hotel e suas dependências, relacionando-as com as lembranças do que lhe fizera medo na infância; ou segredo espantado que não é dado a conhecer ao leitor, pois a mulher do dono do caminhão que leva o louco do Cati para Lages e o hospeda na sua casa, lhe diz ao ouvido, depois de ter dele escutado as coisas que sabia sobre o Cati, as torturas, as perseguições, os degolamentos que nesse lugar aziago eram cometidas; cabeça meditativa que o cobrador do bonde abana, movido por seus pensamentos onde se misturam a melancolia e a tolerância diante das situações que no seu trabalho diário deve enfrentar; olhar oblíquo, clandestino lançado pelo louco do Cati, em direção às sombras que, no campo, onde caminha sozinho, se juntam em volta dos moirões. E, ainda: sinistra segurança, fúria boa, sofreguidão serena e irracional”. Em alguns casos – muito poucos – o substantivo abstrato é determinado por um adjetivo que lhe confere uma qualidade, usualmente atribuída a seres humanos: mistério gaiato, curiosidade serena, lisonja amável, pensamentos melancólicos. Noutros, são dois adjetivos que determinam um substantivo e a ele aparecem pospostos: nuvem branca, lenta, movimento lento e cadenciado, opinião prudente e conciliadora, atitude serena e familiar, areias alvas e onduladas, incompreensão ingênua e irônica, ressentimento antigo e profissional.

            E, vez por outra, pontilhando o texto, em variadas combinações, enriquecidas pela presença de advérbios que lhes modificam o sentido: entre eles, o uso de dois adjetivos intercalados por um advérbio de intensidade (jeito insinuante, muito brando); ou, comparativo (as orelhas mais dobradas, mais abaixadas); ou, de lugar, antecedendo dois adjetivos (a voz do praieiro, lá na ponta, aflautada, explicativa); ou, ainda, de tempo, também a anteceder dois adjetivos (“trotava num tranco que, agora, era ligeiro e ladeado).

            Também, o emprego de dois adjetivos completados por um adjunto adnominal (pedras arredondadas e alisadas pela ação da água); de um adjetivo aplicado a um substantivo a contrastar com outro, aplicado a outro substantivo (seu dedo branco fazia um contraste contra o verde turvo daquele líquido espesso). E, rara a presença de vários adjetivos a se relacionarem com o mesmo substantivo como ocorre na seqüência em que o louco do Cati, assustado, corre para o matinho: matinho mirrado, todo retorcido pelo vento cortante do mar. Limitado no princípio e no fim por dois asteriscos, segue-se a essa seqüência, um diálogo para, só então, se completar a descrição do matinho, em que os adjetivos são modificados por advérbios (um deles pleonástico): quase impenetrável de tão reduzido em altura, de tão raquíticos que eram seus arbustos, de tão tramado.

            Enumerar exemplos da presença de adjetivos em O Louco do Cati, certamente reafirma esta peculiar qualidade textual de Dyonélio Machado que se mostra na dosagem precisa – quer pela moderação, quer pelo que possui de sugestivo – dos elementos que irão construir o seu mundo narrativo. Belo, despojado, enigmático. Profundo. Onde parece não haver lugar para o desnecessário e para o supérfluo.

domingo, 22 de fevereiro de 2004

O louco do Cati : a força da simplicidade. 1


Em setembro do ano passado, pela Editora Planeta do Brasil, torna a ser publicado O Louco do Cati. Quinta edição, consta na sua folha de rosto, sendo, porém, as anteriores, de outras editoras: da Globo, de Porto Alegre, a de março de 1942, a primeira; a segunda, de 1979, da Vertente de São Paulo e a terceira e a quarta (1981 e 1984), da editora Ática, também de São Paulo. Como um aporte surpreendente, no verso da capa o mapa, feito por Dyonélio Machado, do itinerário de seu personagem na aventurosa viagem que fez de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e da sua volta aos campos da fronteira do Rio Grande do Sul. Um desenho que mostra a cuidadosa estrutura da narrativa, cuja espontaneidade, feita de um tom coloquial, da maestria dos diálogos, da expressividade dos sinais de pontuação, do vocabulário escorreito, da breve presença das figuras que, num sábio uso, deixam ver esse narrador maior que foi Dyonélio Machado.

            Em reduzido número, diluídos ao longo do texto, os recursos estilísticos em O Louco do Cati estão em acorde com a sobriedade da escrita que o norteia. Assim, as comparações.

            Tendo como primeiro elemento o personagem central do relato, as comparações lhe determinam o olhar, que dois adjetivos, sonhadores e profundo, qualificam como diante de um horizonte infinito; as orelhas que as asas do chapéu dobram para fora, como duas asas; o estado de espírito, nervoso como um pequeno animal contido; o sono pesado como uma pedra, o cansaço que o faz entregar-se como uma criança; o rosto quieto como tem a criança quando as mães lhes experimentam roupas. Referindo-se aos companheiros de viagem, dos quais se separa, quando voltam para Porto Alegre e ele continua a viagem, a narrativa diz que eram vistos desaparecendo nas dobras oblíquas dos cômoros, como através uns bastidores. E mais adiante, já presos, viajando no navio para o Rio de Janeiro, Norberto, que o leva junto, se lembra dos companheiros e o texto se repete: via-os desaparecendo atrás dos cômoros como através uns bastidores numa descrição que se completa: Já pareciam transparentes, vagos como espectros.... E a palavra espectro irá aparecer em outra comparação. Na seqüência em que o personagem chega ao hotel com os outros presos, também liberados, o gerente lhes pergunta a procedência e ele vai mencionar a Casa de Detenção que ainda o assombrava como um espectro que nos intimida, nos prende na sua volúpia.

 Em relação ao segundo elemento, algumas vezes, as comparações se atém às atitudes relacionadas às crianças: um olhar de susto como têm as crianças pegadas em flagrante; um sorriso de animação como se faz com as crianças que se acompanha até o bonde; o à vontade com que uma das personagens resolve uma situação, como uma pessoa grande, ajeitando diferenças entre duas crianças.

            Existem, ainda, os casos das comparações em que tanto o primeiro elemento quanto o segundo, se constitui de seres inanimados. A areia batida e úmida tão lisa como asfalto, as abas do casaco que o vento abana como duas bandeirinhas, o chapéu com sua copa alta, fendida bem no centro, como um desses pães que antes de ir ao forno as donas de casa entalham com um gesto fácil e profissional de bordo de mão. Como esta última, igualmente, mais elaborada, a comparação na seqüência em que é descrita uma parte do presídio. O primeiro elemento da comparação, numa frase e o segundo, na frase seguinte, iniciada com o advérbio: À sua esquerda, na parte que dava pra uma das ruas, corria um enorme muro de proteção. Como a muralha duma posição fortificada,

– picotado de ameias, interrompido de trecho em trecho por pequenas casamatas, onde se divisava, àquela hora sombria, um perfil escuro com o seu fuzil, guardando a cidadela. 
Nem pelo seu número, assaz pequeno, nem pela sua inventividade, assaz modesta, essas comparações, de per si, não se oferecem, no texto de O Louco do Cati, como um traço marcante.  No entanto, irão se valorizar no conjunto feito de outros recursos estilísticos, igualmente parcos, igualmente discretos, para fazer parte desse todo cuja eloqüência estará, sobretudo, na simplicidade.
 

domingo, 15 de fevereiro de 2004

O exemplo

            Em novembro de 2003, foi lançado, em Porto Alegre, o Caderno de Literatura (Ano VII, número 11), publicação da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, AJURIS, constituída, sobretudo, de textos de magistrados gaúchos (embora acolha a contribuição de magistrados de outros Estados e de Portugal). Nas páginas de seu primeiro número, “Visão”, belo e expressivo poema de Jorge Adelar Finatto (um entrelaçar-se ao rio e às terras de Porto Alegre, um submeter-se à condição humana e, também, à esperança), cujos últimos versos podem ser a síntese do que a revista da AJURIS irá representar: um caminho onde a emoção navega. São poemas, contos, relatos, crônicas, comentários de leitura que demonstram a interação da Magistratura com a sociedade da qual ela é parte integrante: Julgadores por missão constitucional, escreve, no sétimo número da publicação, o então Presidente da AJURIS,  Luiz Felipe Silveira Difini, mas, também – e principalmente – homens e mulheres que, na sociedade brasileira, vivem suas vidas, trabalham, amam, lêem, escrevem, riem, choram. O que significa ser a matéria do Caderno de Literatura feita de imaginação, lirismo, lembranças, reflexões, intensamente rica ao expressar emoção e instigante nos textos que traduzem preocupações sobre as distorções sociais – e a pobreza e a injustiça e o alijamento – que emergem sem travas.

            E, o render um tributo às Missões Jesuíticas do Rio Grande do Sul, confere, ao décimo primeiro número da revista, significados, sem dúvida, especiais. O romancista Luiz Antonio de Assis Brasil, preconizando que é hora de acabarmos com o infantil preconceito contra a experiência missioneira, experiência que, no seu artigo, delineia; o juiz Adair Philippsen, não deixando esquecer, no poema “Tambores distantes”, os males causados em nome das perenes e imutáveis verdades com as quais os dominadores pretendem, sempre, justificar seus crimes. Assim, lembrar o grito de guerra de Sepé Tiaraju, Esta terra tem dono parece extremamente oportuno num momento da vida nacional em que direitos adquiridos – independente ou não de privilégios – são ameaçados. E, também, num sentido mais amplo, se considerada a postura do país diante das injunções políticas e econômicas que lhe são impostas. Porque o que tem sido dado a ver – e não apenas nos dias atuais, mas, ao longo da sua História – é a perigosa (e ultrajante) facilidade em aceitar orientações alienígenas, advindas de outros hemisférios. O que, hoje, adquire uma importância maior diante do que o atual suposto dono do mundo preconiza como certo e que, mal e mal e muito pouco, é contestado pelos países do Primeiro Mundo e pelos outros (até porque esses nunca tiveram voz). Embora, não sejam desconhecidos os verdadeiros motivos, sob os quais se esconde esse dono do mundo, para clamar razões, nem tão pouco o número das vítimas inocentes, alvos de massacres que somente a razão do mais forte justifica. 

            Daí que esta terra tem dono, exclamação imperativa, reivindicação inconteste, assertiva dolorosa, emitida pelo índio face à agressão irracional e gananciosa dos que chegavam ao Continente deveria ser, no Continente, um conceito vivo e constante, em face de todas as imprudentes debilidades – pequenas e grandes praticadas por cidadãos, não importa qual seja o seu lugar na sociedade – que põem em risco o idioma, a idiossincrasia, as riquezas, enfim, a soberania do país.

domingo, 8 de fevereiro de 2004

Caminhos negados


            Sob a rubrica “Memória Sul-Riograndense”, que abriga várias obras de imenso interesse para o conhecimento da História do Estado, a Universidade Federal de Santa Maria publicou, em 1997, Santa Maria. Relatos e impressões de viagem, volume comemorativo ao bicentenário de fundação da cidade. Reunidos por José Cardoso Marchiori e Valter Antonio Noal Filho os textos (em ordem cronológica e antecedidos de uma nota biobibliográfica e de um breve comentário sobre o autor) e as ilustrações se completam num precioso testemunho que tem início nas palavras do Dr. José de Saldanha. Ele esteve Santa Maria entre 1786 e 1787, registrando num diário as atividades que desenvolveu como geógrafo e astrônomo das duas primeiras Partidas Demarcadoras no Rio Grande do Sul, assim como informações que se tornariam uma valiosa contribuição etnográfica zoológica e histórica. Suas referências a Santa Maria são as mais antigas que se conhecem. Seguem-lhe as de Auguste Saint-Hilaire e a de muitos outros entre os quais alemães, italianos e franceses que se detiveram em aspectos religiosos, comerciais, urbanísticos, históricos, geográficos e econômicos que, juntamente com um olhar para a paisagem, para o casario e um fixar-se nos costumes vão revelando a cidade no enumerar dos fatos e no testemunho das vivências.

Se dados e cifras e registros importam para acompanhar a trajetória da cidade desde esse ano de 1797 quando o acampamento militar, ocupando terreno do Padre Ambrósio José de Freitas levanta seus ranchos e um pequeno oratório no topo da colina, tornando-se o evento definitivo para a fundação de Santa Maria, até esse melancólico período de crise em que – interrompidos os filões que determinavam o seu progresso – curvou-se à necessidade de buscar outros caminhos. Não menos ricos são os depoimentos sobre seus contornos e seu modo de viver. Aprazível, situada em meio de vales e desfiladeiros, com seus arredores encantadores, sua magnífica floresta e seus campos a se estenderem longe. Uns e outros com flores radiantes, purpurinas e matizes de flores agrestes. Na menção às casas, impondo-se a simplicidade: são de madeira e rebocadas de argila, têm um pequeno jardim e, nos fundos, um laranjal. Diz um cronista ver um telhado rosa, um pouco levantado e saliente, fazendo sobressair a brancura dos muros. E outro, depois de contornar uma pequena floresta, no sopé da serra, depara com a cidade e a define como um lindo ninho de casas brancas com telhados vermelhos. Também houve os que se detiveram em algum de seus costumes e na qualidade que parece ser própria dos rio-grandenses-do-sul. Mencionado, como exceção, o cultivo do linho, fiado e tecido para a confecção de toalhas de mesa e de rosto que duas senhoras fazem apenas por distração. Como algo de habitual, os jovens de origem alemã que noite alta e de luar, em véspera de domingo de Ramos passam pela cidade, tocando seus instrumentos. E, muito especial, o jeito que têm os campeiros de indicar distâncias, sempre bem menores do que realmente são. Talvez porque habituados a percorrer grandes distâncias, originando a expressão légua de beiço por ser costume indicar as distâncias com uma ligeira contração da boca. E há os que dão conta da hospitalidade dos gaúchos, tida por proverbial. Um cronista confessa que não sabia ser ela tão ampla. E outro, diz que os habitantes das povoações da campanha são hospitaleiros afáveis e francos, como essa vasta e devassada região varrida e purificada, de vez em quando, pelos vendavais do pampeiro e a chuva semidiluviana e que na cidade de Santa Maria, então como simples freguesia, essa hospitalidade deixaria o viajante mais sinceramente penhorado.

            Raras vezes, nesses escritos, aparecem observações negativas. Fernando Callage que nasceu em Santa Maria e foi viver em São Paulo, quando voltou, anos depois, pode vê-la com olhos de forasteiro, mas, alimentado de lembranças. Observa o que na cidade perdurou – o hábito do passeio na praça e as intriguinhas dos grupelhos políticos. E o que nela houve de progresso, visível nas ruas, nas praças, na arquitetura e que a deixou leve, de gosto mais fino e apurado. Sobretudo, se entusiasmou pela Escola de Artes e Oficios da Cooperativa de Consumo. Elogia sua organização teórica do ensino, sabiamente elaborada até a aprendizagem, sabiamente prática, profissional, adquirida nas várias seções: fundição, modelagem, ajustadores, ferraria, artefatos de cobre, marcenaria, carpintaria, tornearia, estofaria. Um ensino, oferecido aos filhos dos operários da Viação Férrea que, ali, não somente aprendem um ofício e um curso elementar, mas recebem roupa, alimentação, médicos, farmácias e gabinete dentário sob a orientação dos  maristas no que respeita aos meninos e de freiras no que respeita às meninas que ali aprendem trabalhos manuais. O estabelecimento prima pela limpeza e higiene e se constitui  uma obra notável que proporcionará, diz o cronista, magníficos resultados para o país.

            Dez anos depois, em 1940, outro santa-mariense, se refere, também, à Escola de Arte e Ofícios, como uma das primeiras da América do Sul, onde lecionam professores nacionais e estrangeiros. Menciona que nas oficinas da Viação Férrea do Estado, instaladas em Santa Maria, trabalham, na época, mais de mil operários, fabricando os mais complexos e variados apetrechos necessários ao material rodante e às instalações da grande ferrovia gaúcha, inclusive carros de passageiros, dotados com todo o conforto, segurança e luxo. No mesmo ano, Wolfgang Hoffmann Harnisch percorreu o Rio Grande do Sul e no seu livro, O Rio Grande do Sul - A Terra e o Homem, um dos mais importantes relatos de viagem sobre o estado, diz que na Escola de Artes e Ofícios estudam setecentos alunos do sexo masculino e mais de mil do sexo feminino.

            Inestimáveis informações oferecidas a expressivo número de alunos, aliadas à possíveis oportunidades de trabalho revelam a importância da iniciativa de Manuel Ribas e de seu irmão Augusto.Uma iniciativa que deveria se multiplicar, atendendo necessidades locais ou regionais de todo o país. Ofereceria uma formação rápida e possibilidades de trabalho a uma infinidade de jovens que, respeitados como técnicos, não encarariam como única solução para se profissionalizar o curso superior insuficientemente oferecido pela rede pública de ensino. No entanto, não apenas, deixou de ser mantida, em Santa Maria, como a sua idealização não originou seguidores. O que, num país carente – salvo para as elites que suprem as deficiências usufruindo os benefícios encontrados em países do Primeiro Mundo – de praticamente tudo o que é necessário para o bem-estar de sua população, é extremamente lamentável, pois, com certeza, está negando caminhos que conduziriam às prementes e imprescindíveis opções de trabalho.Trabalho que, certamente,  irá minimizar a pobreza e a exclusão social que, desde sempre, campeia pelo país afora.

domingo, 1 de fevereiro de 2004

Viagem no Continente: as perguntas


             Os textos de Julieta de Godoy Ladeira se intermeiam, diferenciados pelos caracteres itálicos, aos de Osman Lins no livro La Paz existe? (Summus, 1977) que eles escreveram, imediatamente depois de voltar de viagem ao Peru e a Bolívia. Textos originados de impressões, pois não tomaram notas e a narrativa se baseia, apenas, nas lembranças. Nos de Julieta de Godoy Ladeira – emoção e raciocínio – as referências aos atropelos de uma viagem que acabou se transformando, pela incúria do agente de turismo, num tormento: teve que esperar, muito tempo, sozinha, pelo marido que saíra, em busca de solução para continuar a viagem; foi obrigada a desembarcar, em pleno descampado e sob a chuva, pela falta de óleo no motor do ônibus e carregar as malas, pisando no barro, para subir às pressas, em outro veículo que mal parou para que as pessoas pudessem subir. E a menção à fome, à impossibilidade de dormir, ao cansaço, à tensão frente ao desconhecido, à indisposição, provocada pelo Mal dos Andes, o “soroche” (angústia, falta de ar, opressão, originada das grandes alturas), que a acompanharam no tempo que durou o percurso entre Puno e La Paz e, aos quais, mais do que Osman Lins, ela esteve sujeita.    

        A inquietude advinda de estar em um lugar desconhecido a percorrê-lo entre a chuva, lama e névoa, dentro de um ônibus (animal enlameado que se move), num trajeto que lhe parecia não ter fim; a dor de cabeça e dos olhos que a esmaga, a aprisiona; o frio, a exaustão. Vivências inesperadas num país em que é, e permanece estrangeira, (Sinto-me dentro de nuvens, liquefeita, e o que estarei fazendo a essa hora nesse local cujo nome ignoro? ,[...] o silêncio do lago estende-se por toda a região. Uma cápsula. Estou em seu interior, separado do mundo), mas um país que a espanta e comove. Espanto e comoção levando-a à perguntas que parece não terem respostas.


            Diante da informação dada por alguém, que fala de modo inexpressivo, pausado, quase interrogativo, ela observa  essa calma e essa indiferença no se expressar e se pergunta: Serenidade vinda dos que sabiam trabalhar as pedras, esse tom de voz seria o mesmo dos construtores de templos e cidades nos ventos da montanha?  Em Puno, onde tudo parece se erguer da lama, nascida de sua cor, de sua umidade, associando um cotidiano à água e à lama, à desolação e à sombra, se indaga sobre que tipo de vida, aí,  podem levar as pessoas. Uma vida que a pobreza, sempre visível, mostra difícil e que a faz, também, se perguntar como conseguem dinheiro para viver. Na viagem de ônibus para La Paz nota o medo e a apreensão das índias e presume que, talvez, se deva ao cansaço, ao não poder dormir no desconforto dos bancos ou à possibilidade constante de perder, nas mãos dos fiscais alfandegários, o pouco que compraram. Quando, num hotel à beira do lago Titicaca, aguarda o marido, vê as índias, lá fora, no pátio, que lhe sorriem. Bordam e mostram, de longe, seus trabalhos: Cânhamo de cor natural, desenhos ingênuos, intensamente coloridos. Lhamas, pássaros, flores. Aproximam-se da porta, oferecem, mostrando o trabalho. Julieta de Godoy Ladeira se dá conta desses mundos que o vidro separa (na verdade, ele  tem menos importância do que as razões que o determinam): Elas estão ali fora e nós do lado de dentro. Elas sentadas no chão e nós aqui entre esses móveis, já gastos a partir de sua confecção, mas ainda assim móveis e portas que separam determinam, classificam. Com que direito? E, na lembrança de uma parada do ônibus na praça de verde escasso e maltratado jardim em que as pessoas entram para vender, de banco em banco colares coloridos e pratos de comida, milho cozido e mandioca, se insere outra imagem: a do episódio ocorrido no trem para Machu Pichu, que para no meio do caminho, impedido pelas pedras de um desabamento sobre os trilhos, num lugar entre a montanha e o rio. De repente, apareceram crianças vendendo mandioca, milho e batata doce. Uma pequena índia a dizer o preço em inglês. Julieta de Godoy Ladeira diz ter sentido, naquele momento, de modo vivo, duro, não apenas intelectual, o que é ser um povo pobre, dependente, dominado por outro poder econômico, outra cultura. E formula a pergunta crucial, fadada a não ser respondida nem a curto nem a médio prazo (um otimismo malsão poderá presumir que, algum dia, certamente, poderá  vir a sê-lo) ainda que atormente a algum ser pensante do Continente: Nós os sul-americanos, continente algemado, terceiro mundo, a classe que entra e oferece bugigangas para sobreviver, ainda agora, sempre o mesmo, por tantos séculos, todos trocando alguma coisa por pedaços de espelho, miçangas, dólares, sempre, até quando?